Todos os terrores

Todos os terrores

1

Moribell se livrou duma lágrima na face sabendo que em seguida viriam outras. E vieram logo, muitas, num choro solto, incontrolável. Pegou um lenço branco no bolso interno do paletó... com algum esforço... como se estivesse esgotado, impotente.

Já não suportava ver o sofrimento da mãe naquela maca, ouvindo os gemidos e lamentos arrastados, que se prolongavam há dois dias, no corredor do Hospital de Clínicas, à espera dum leito na UTI.

Ele sabia que a espera podia ser longa ou até resultar em nada, temendo que a mãe pudesse sucumbir ali mesmo, no corredor sombrio e impessoal dum hospital que, embora se esforçasse até os limites dos atendentes, enfermeiros e médicos na ânsia de recuperar doentes e salvar vidas, ia perdendo sua comprovada competência e autossuficiência diante da monstruosidade duma crise que escapava a qualquer tentativa de controle, engolido pela falta de ação e desrespeito à vida pelas autoridades municipais, mais preocupadas com suas próprias crises pessoais.

Permanecia curvado, encolhido, com a cabeça entre as mãos, tentando descansar um pouco numa cadeira ao lado da mãe, aguardando um socorro que não chegava. Desde ontem à noite vinham prometendo um leito na UTI mas...

Àquela altura já parecia uma inutilidade tremenda continuar ali; praticamente tinha perdido as esperanças. A mãe ia piorando a cada momento, respirando com muita dificuldade, arfante, e para um observador que passasse pelo local a morte parecia rondar sem tréguas a velha senhora, aparentemente sem outra perspectiva que não fosse o fim próximo.

Aos 35 anos, Moribell, ainda que fosse casado, tendo esposa e dois filhos de 9 e 7 anos, se sentia como o filho caçula (era o mais novo entre 4 irmãos) prestes a se separar para sempre da mãe, com todas as implicações que isso pudesse acarretar, desde já se vendo desprotegido e indefeso até se achar uma vítima inocente do destino. Tudo isso porque era muito ligado à mãe, tinha sido o mais apegado entre os irmãos, um sentimento estimulado em parte por ela mesma que, embora adorasse os netos e se desse muito bem com a nora, ainda se ressentia de não ter o caçula só para si.

Agora ele ia intuindo que aquela ligação estava chegando ao fim.

Mas ainda se sentia o único responsável pelo internamento e, portanto, se culpando em parte pelo fracasso dum tratamento que ia afundando nas espirais da morte.

Seus irmãos, mesmo sabendo da internação e do estado grave da mãe, não tinham ido até ao hospital.

2

Moribell tinha um bom salário numa multinacional reconhecida mundialmente por sua competência no ramo das telecomunicações, atuando como engenheiro eletrônico, sempre em viagem a outras cidades e países. Então, depois de vários anos sem faltar ao trabalho, exceto em período de férias e licença paternidade, tinha solicitado uma licença especial para acompanhamento de parente em estado grave.

Mas suas posições social, profissional e familiar haviam se transformado em algo absolutamente sem sentido nos últimos dias, diante do agravamento do quadro de saúde da mãe e daquelas horríveis crises respiratórias.

Invadiu-o um sentimento de impotência e insignificância na vida, frente às forças desconhecidas que ele sempre tinha ouvido falar mas que desprezava até agora, assumindo então, e secretamente, que tais forças não tinham nenhuma complacência para com o frágil ser humano.

Arlete, sua esposa, mãe dos dois netos de dona Julia, tinha vindo horas atrás com a intenção de substituí-lo na vigília, mas desistiu diante da firme posição dele em não abandonar o local.

Os médicos vinham de vez em quando auscultar os pulmões da paciente; jamais traziam a tão esperada notícia da transferência para a UTI. De que valia agora o plano de saúde de dona Julia? Sua ótima aposentadoria como professora universitária? As economias e poupança de fazer inveja às senhoras da classe média?

Com o passar do tempo e a piora no quadro de saúde da mãe, ele ia se desesperando cada vez mais, numa angústia visível e crescente.

À tarde, em meio ao cheiro acre e rascante dos remédios misturados ao forte cheiro de álcool, o sofrimento de dona Julia aumentou. À noite ela gemeu sem parar, com dificuldade extrema para respirar, como se o fôlego fosse lhe faltar no instante seguinte. Moribell, cada vez mais impotente e sem ter o que fazer, pensou em ameaçar a direção do hospital exigindo que a mãe fosse transferida para a UTI. Mas em seguida compreendeu que seria um ato inútil de sua parte, afinal, o problema não era tão simples. Havia ausência de leitos na UTI de todos os hospitais da região.

3

E na madrugada mais sombria de sua vida, quando todas as portas, todas as saídas antes possíveis, iam se mostrando irremediavelmente fechadas, naquele corredor silencioso e triste de presságios fúnebres, apenas tendo como um som lúgubre e longínquo os gemidos da mãe, cada vez mais fraquinhos e desesperançados, levado pelo desespero absoluto e pressionado pela dor sem fim... ele teve uma ideia... uma ideia sinistra... mas resistiu.

Por enquanto não era o momento de pensar naquilo... não ainda... não até que todas as possibilidades, mesmo as mais remotas, houvessem sido descartadas... afinal, tirar a vida da própria mãe, ainda que, com vistas a um nobre processo (eliminar o sofrimento extremo de um ente querido), não parecia correto.

Mas ia sendo muito difícil, quase impossível, continuar presenciando aquele sofrimento. Uma coisa é ver alguém sofrer, morrendo à míngua, através da tela duma tevê, por exemplo; outra bem diferente é estar presente, ao lado do moribundo, com tudo o que isso possa implicar, desde o cansaço físico e emocional até a excessiva vontade de chorar ou sair correndo dali.

Moribell já não ia aguentando; estava com sono, excessivamente cansado. Estar ali em pessoa, tão próximo, a um simples contato de mãos trêmulas e ansiosas, era um ato corajoso, é claro, mas extremamente desgastante ver a agonia e o suplício da mãe respirando tão precariamente, tentando puxar o fôlego com extrema dificuldade, num claro e inequívoco sinal da morte - vestígios de tragédia iminente.

O ambiente característico de um hospital já não é muito agradável em si mesmo, então imagine tudo isso amplificado por uma pandemia e falta de leitos, equipes de atendimento inadequadas, incompletas, tendo de lidar com escassez de material: catástrofe anunciada. Um forte cheiro de morte rondando os pacientes. E morte longa, demorada e sofrida.

De manhã, dona Julia, num esforço sobre-humano, extremamente fragilizada, conseguiu chamar o filho para bem perto de si, tentando pronunciar algumas palavras, cochichando de maneira quase inaudível... em vão. Ele não foi capaz de entender o que ela queria, ao contrário, ficou ainda mais desesperado, chorando e acariciando a cabeça e os cabelos brancos da mãe... até que, num olhar soberano e definitivo de dona Julia, quando ela agarrou o braço dele com as últimas forças que lhe restavam... ele compreendeu. Compreendeu o que a mãe mais desejava naquele instante. Tinha chegado a hora H.

Saiu dali apressadamente, foi até o estacionamento do hospital, entrou no carro, pegou a arma sem pensar duas vezes e voltou correndo até o corredor... se aproximando da mãe... sendo capaz ainda de entrever um fraco sorriso de condescendência e aprovação naqueles lábios pálidos e ressequidos. Mas não foi capaz de ir em frente, chorando e se recriminando por se achar um covarde.

Então, num desvario, como se obrigado a extravasar de algum modo, liberando toda a frustração e angustia que o sufocava, apontou a arma para o teto do hospital e disparou várias vezes, gritando, fora de si, fazendo exigências:

- Desgraçados! Eu quero um leito pra minha mãe! Ela tem de ir pra UTI!

Houve muita correria, enfermeiros e médicos se escondendo, pacientes caindo de outras macas ao longo do corredor, se levantando de qualquer jeito e buscando desajeitadamente um abrigo, um esconderijo, com medo de Moribell e dos tiros.

Então, calmamente, ele sentou na cadeira e aguardou. Meio minuto depois suas mãos começaram a tremer exageradamente... uma palidez mortal tomou seu rosto e ele caiu no chão ali mesmo, ao lado da mãe.

Algumas pessoas foram se aproximando... desconfiadas... com cuidado... prestando atenção... com medo que ele voltasse a disparar. Um médico constatou em seguida a morte de dona Julia. Infarto fulminante.

Os jornais e a imprensa em geral iriam comentar, depois, não sem levar em conta a ironia da morte por infarto duma paciente com grave crise respiratória em decorrência da Covid-19, que o filho tinha conseguido seu intento original, ou seja, tirar a vida da mãe, intenção que teria constado no depoimento de várias testemunhas.

4

Arlete Moribell vinha caminhando pelo corredor, sem compreender exatamente o que estava acontecendo, assustada, perplexa, pedindo por amor de Deus para não ser aquilo que ia imaginando... mas entendeu que suas súplicas não seriam atendidas ao ver, com clareza, os policiais levando o esposo. Ao se aproximar do corpo da sogra na maca, viu também a arma sobre o lençol sendo pega pelo perito criminal. Era uma cena dolorosa e inequívoca.

- Houve muita gritaria depois do disparo, correria pra tudo que é lado - disse a enfermeira a um policial. - Ele simplesmente deu uns tiros pra cima, depois de apontar a arma pra cabeça da própria mãe, meu Deus, que loucura! Depois se sentou ali e começou a tremer que nem um condenado... aliás, condenado ele é mesmo, onde já se viu, querer matar a própria mãe! O cara é um idiota... aliás, idiota é pouco pra ele, é um louco mesmo, completamente pirado, retardado! Vai direto pra um hospital psiquiátrico. Se dependesse de mim, ia pra cadeia, direitinho pra cadeia, sem choro nem vela, isso sim, até mofar de podre!

Arlete fingiu não ouvir. Ainda não queria acreditar... afinal, se tratava do pai dos seus filhos, um homem trabalhador e esforçado, inteligente, sempre muito preocupado com a família e tudo. Pensou em chamar um advogado para defender o marido... não sabia ao certo o que fazer... estava meio abobada,... tonta com tudo aquilo. Certamente ele seria preso por porte ilegal de arma, perturbação da ordem e danos ao patrimônio público.

De repente ela achou um exagero pagar alguém para defender um louco que sai por aí atirando... embora se tratasse do pai dos seus filhos, do João Paulo e da Maria Elisa. E como ia contar isso aos dois? Agora estavam na escola. Mas dali a pouco, quando chegassem em casa querendo saber da vó Julia? Se ela tinha sarado? Quando ia sair do hospital? E o papai? Por quê ele não tá aqui?

Arlete não sabia o que fazer, com quem falar, aonde ir. Ficava andando feito barata tonta no corredor do hospital... pra lá e pra cá... falando sozinha... soluçando... olhos vermelhos... parecendo olhar para as pessoas e pedir alguma coisa... implorar... mas implorar o quê? Sentiu alguém puxar o seu braço, levou um susto e, ao se virar de supetão, deparou com Cezar Campali, seu irmão. Desabou ali mesmo, nos braços do irmão, chorando convulsivamente.

Ele percebeu que ela estava em estado de choque. Arlete torcia as mãos dizendo palavras e frases desconexas, entrecortadas, balbuciando às vezes coisas ininteligíveis, chorando muito, dizendo ainda não acreditar na morte da sogra. Estava fora de si. O choque a havia roubado de si mesma.

- A dona Julia, meu Deus, dona Julia - ia repetindo sem parar com as lágrimas escorrendo pelas faces e torcendo muito as mãos.

O irmão a arrastou para longe dali, acreditando que ela poderia cair em si e deixar de repetir coisas sem sentido lá fora, ao ar livre, onde circulava uma brisa leve e o frescor da manhã clara e morna desse talvez um outro aspecto à tragédia.

Ok, pensou Cezar, o cara é um maluco e tentou matar a própria mãe. Isso era uma parte do desastre. E depois? Como contar às crianças tamanha insensatez e loucura sem causar um grande choque que provavelmente deixaria marcas profundas e cicatrizes?

Seria uma tarefa gigantesca, sem dúvida, dar fôlego novo a uma família destroçada, recém-destruída, ou quase, pelo ato impensado de um dos seus próprios membros.

Cezar sentiu um aperto no peito e até um certo desanimo ao pensar naquelas pobres crianças que não imaginavam ainda o terror que eventualmente poderiam atravessar nos próximos dias, meses e talvez até anos, dependendo da capacidade de reação e resiliência de cada um deles - tamanha desgraça podendo acarretar prejuízos incalculáveis a todos da família implicando nos modos e formas de cada um enxergar a vida e seus tropeços e percalços dali em diante.

Só Deus mesmo, ele pensou, para auxiliar e dirigir os desesperados pegos de surpresa, numa surpresa desastrosa, para enfrentar tudo aquilo; afinal, quem espera algo dessa magnitude numa manhã clara de sol morno e agradável - quando tudo parece indicar mais um dia aparentemente normal à frente?

5

Ele balançava a cabeça andando em círculos, como se fosse incapaz de fugir de uma trajetória imposta traiçoeiramente aos despreparados para tal tragédia. Seria preciso juntar os cacos, pensou, sair catando os pedaços aqui e ali. Iria precisar de muita coragem, disposição e perseverança, sobretudo em consideração a duas crianças que praticamente nem começavam a viver ainda, absolutamente dependentes dos pais àquela altura - e agora sem um deles.

Conhecia muito bem a irmã, considerando então que ela pudesse sobressair na crise e não perder as estribeiras, porque, se ela não demonstrasse pulso forte e valentia diante de tudo, as crianças poderiam sair daquele episódio marcadas de forma trágica e talvez irrecuperáveis para uma vida sadia, sem os dramas e conflitos interiores que podem advir de tais problemas relacionados a perda dos pais.

Cezar era uma pessoa prática e competente sob os aspectos gerais do dia a dia, se notabilizando principalmente em resolver os problemas imediatos que repercutem no cotidiano de forma rápida e surpreendente às vezes. Jamais deixava de estender a mão aos que se acham perdidos e distantes das soluções que podem trazer alívio às suas vidas. Ele enxergava claramente que há pessoas menos dispostas a se tornarem dinâmicas e autossuficientes em meio aos grupos de amigos, colegas e familiares - não se furtando a ajudar tais pessoas.

Agora ia procurando contemporizar, ainda que abalado diante do ocorrido, mas conscientemente se preparando para tomar as decisões necessárias aos desdobramentos daquele doloroso processo. Estava saindo de casa em direção ao escritório de engenharia civil ao receber a ligação do pai relatando o caso visto num telejornal local. Seu pai assistia fanaticamente todos os telejornais diários, desde os matinais até os noturnos, tendo o hábito de ligar para o filho em se tratando de notícias ou fatos importantes.

Cezar deduziu que teria de dar atenção também ao cunhado, independente dos motivos que teriam levado à prática de um crime idiota, sabe-se lá o motivo para tal disparate. Iria falar com George, procurar compreender ao menos em parte, ouvir as possíveis explicações para um comportamento sem sentido. Era o que pensava naquele instante, além da revolta, é claro, que o tomava igualmente. Onde vamos parar com tudo isso, ia se perguntando, trezentos mil óbitos... e os especialistas e médicos em geral afirmando que nem havia se chegado ao pico da tragédia ainda.

Ele não era capaz de compreender a omissão das autoridades, a idiotice dos negaceadores, a falta de bom senso e de prudência, enfim, toda a ignorância pautando a insensatez daquelas vozes obscuras do desensinamento, do medievalismo e do atraso. Em todo caso, dizia a si mesmo, se conformando em alguns momentos, as narrativas vitoriosas repugnam sempre a morte, louvando a vida e o respeito ao ser humano. E dessa vez não seria diferente, concluiu, bastando apenas cultivar a paciência e a esperança, diante da incongruência de políticos e outros expoentes da sociedade para, mais uma vez, derrotar os arautos do atraso e da anticiência.

A primeira providência a ser tomada: procurar algum tipo de apoio psicológico para a irmã, talvez ali mesmo, no hospital, no local da tragédia, àquela altura já infestado de repórteres e emissoras de tevê e rádio. Depois de acomodar Arlete na sala de espera de um dos consultórios, seguindo as recomendações da enfermeira, procurou pela direção do hospital querendo saber o que poderia ser feito, obtendo a informação de que tudo ia sendo arranjado para o atendimento à irmã. Em seguida ele pensou nos sobrinhos outra vez. Pegaria as crianças no colégio, levando-os a uma churrascaria; eles adoravam churrasco.

6

Cezar andava revoltado com tantas mortes - precisamente com a condução da pandemia pelas autoridades que se iam revelando incompetentes, irresponsáveis e descuidadas com a vida alheia.

Era uma falta de prudência generalizada na compra de vacinas, medicamentos e equipamentos, como materiais para instalação de leitos de UTI etc. Estava especialmente assustado com o silêncio de parte da sociedade, como associações médicas, empresários e outros líderes sociais e comunitários, que se abstinham de condenar tamanha desfaçatez, não apontando crimes de responsabilidade da parte de governantes e de outros cúmplices, como o Congresso Nacional, por exemplo. Aquela parecia uma sociedade apática, sem dinamismo, sem vontade própria, se deixando levar pelos arroubos autoritários de mandantes inescrupulosos e intolerantes, incapaz de tomar as iniciativas necessárias para salvar um doente terminal - a própria sociedade como um todo.

Mas ele sabia que não podia desabar precisamente agora, quando mais precisavam dele, acreditando, acima de tudo, que a boa narrativa é aquela que privilegia a vida e repugna a morte, ou seja, a narrativa vitoriosa estará sempre ao lado da vida e será, inevitavelmente, contrária à morte, repudiando as sombras da ignorância, enfim, desprezando os repulsivos negacionistas.

A morte como extinção biológica pode até ser algo bom e instrutivo, pensou, para os que ficam, dependendo da situação. Mas em casos específicos se assemelha, geralmente, à alguma coisa adstringente, funesta e quase nunca bem-vinda. Pensou na sogra da irmã morrendo à míngua, num corredor de hospital, sem oxigênio... Era revoltante. Por um instante pôde até sentir a revolta, o desespero e a impotência do filho de dona Julia, uma confusão horrível na ânsia de querer fazer algo para aliviar o sofrimento do ente querido - e não poder fazer nada. De mãos amarradas. Exceto para cometer o desatino que estragou sua vida e as vidas de outras pessoas.

Ele pegou os sobrinhos no colégio e foram em seguida a uma churrascaria. Gostava de ver as crianças com suas mochilas às costas e uniformes limpos e impecáveis, sobretudo de manhãzinha, se a irmã pedisse a ele que levasse os sobrinhos à escola, quando ela mesma não podia fazê-lo, premida por alguma urgência.

Quando estavam mastigando seus últimos bocados de carne, notaram uns tipos esquisitos entrando na churrascaria, um bando de moleques entre 14 e dezesseis anos aproximadamente, vestindo bermudas amarrotadas e camiseta regata, além de máscaras e bonés. Usavam a máscara protetora mas ainda era possível deduzir, ou intuir, suas expressões mal-intencionadas, talvez pelos gestos e andares cheios de arrogância e aparente ousadia, como se fossem os donos do pedaço, sem nenhuma preocupação com a reação ou olhares dos frequentadores. Foram até o atendente e pediram 4 marmitas. O mais alto entre eles se escorou no balcão, apoiando o cotovelo ali e dando ordens como se fosse o patrão.

- Põe mais carne aí, cara, e da boa, hein, bem macia, senão eu volto aqui e te faço engolir tudo... depois de cuspir em cima, é claro - e gargalhou sarcasticamente.

O garçom não gostou nem um pouco daquilo e se fez carrancudo, mas continuou aprontando as marmitas.

O garoto pegou os embrulhos e deu meia volta em direção à saída, falando sem olhar para trás:

- Põe na conta!

Imediatamente o garçom entendeu que aquilo não era uma brincadeira e disse:

- Ei, cara, você tem de pagar isso aí!

O moleque parou e se voltou com um olhar fuzilante.

- O, cara, um filho quis matar a própria mãe agora há pouco porque o governo não foi capaz de comprar uma vacina pra ela e você fica me enchendo o saco por causa duma marmita?!

O atendente não compreendeu o que uma coisa tinha a ver com a outra e na hora não soube o que responder, se mantendo paralisado atrás do balcão. Em seguida pegou o celular e chamou a PM, enquanto os 4 moleques saiam andando tranquilos pela porta da frente, olhando ostensivamente para os frequentadores nas mesas próximas.

Cezar estava preocupado com os sobrinhos que haviam acompanhado toda aquela discussão. Se eles ao menos desconfiassem do que se tratava… mas iam ficar sabendo uma hora ou outra, alguém teria de contar. Não havia outro jeito. Ele só não sabia como.

Pediu sorvetes de morango e saboreou a sobremesa em silêncio, triste e abatido, embora saborear seja uma palavra errada para alguém que aparentemente nem esteja sentindo o gosto da comida desde o inicio da refeição. Como deixar João Paulo e Maria Elisa a par daquele problema? Queria encontrar um modo menos chocante para falar da morte de dona Julia e da prisão do pai deles.

7

O tempo foi passando, até que João Paulo pareceu despertar subitamente do reino das guloseimas e perguntou ao tio:

- Por quê ainda estamos aqui, tio?

Aquilo soou como uma senha, fazendo Cezar cair em si de repente e soltar a bomba, quase sem querer, mas aliviado por ser praticamente obrigado a contar tudo.

- Sabe, crianças, precisamos conversar seriamente… aconteceu uma coisa… uma coisa mais ou menos ruim…

João Paulo interpelou o tio vivamente, com os olhos brilhantes, agora mais curioso ainda, numa demonstração de perspicácia incomum para um garoto de 9 anos.

- Bom, tio, eu acho que não tem coisa mais ou menos ruim, ou é ruim ou não é, você não acha?

Maria Elisa arregalou os olhinhos vivazes, surpresa com a tristeza do tio, sempre muito animado e alegre, sobretudo com eles, e agora muito sério e tristonho. João Paulo firmou a vista sobre o tio, encafifado com aquela mudança aparente no semblante de Cezar, que continuou.

- É que o pai de vocês… bom, ele perdeu o controle hoje... seu pai… no hospital... ele deu uns tiros lá dentro. E a vó de vocês… ela… ela não suportou tudo aquilo… acabou falecendo… talvez o coraçãozinho dela não tenha aguentado o baque…

- Vovó… - balbuciou Maria Elisa entre soluços com os olhinhos aguados.

Cezar olhou ao redor. Havia gente nas mesas próximas, comendo e bebendo, se mostrando despreocupada com a proliferação do vírus, a despeito dos pedidos dos órgãos municipais de Saúde e outras autoridades no sentido de se evitar aglomeração. Ele atribuiu aquilo ao descompasso entre as recomendações de alguns governos estaduais e do governo federal em confronto direto com organizações mundiais de Saúde e algumas associações médicas e ONGs, que alertavam a população para o perigo do contágio e da contaminação fatal em muitos casos.

- Eu quero a minha vó – resmungou Maria Elisa com a vozinha chorosa, não atentando ainda para o fato de que havia perdido também o pai que, por algum tempo, estaria na prisão.

Cezar se levantou, alisou carinhosamente os cabelos pretos da sobrinha e foi até o caixa.

Havia uma tevê próxima exibindo cenas dum noticiário local, sobretudo de pessoas em portas de hospitais e enfermarias exigindo leito em UTI e oxigênio, gente atacada pelo vírus que não ia encontrando atendimento adequado devido ao crescimento explosivo no número de casos e à superlotação dos hospitais públicos e particulares em geral. Então surgiu um vídeo com o depoimento dum rapaz internado num hospital público, de uns 30 anos aproximadamente.

Cezar parou o que estava fazendo e deu mais atenção à tevê. O rapaz demonstrava não ter muitas esperanças de sair do hospital com vida, bastante abatido e desanimado, com a voz fraquinha e quase sumida, derramando uma ou outra lágrima nas faces.

- Eu acho… eu acho que não tenho… que não tenho muito tempo de vida… tô com dificuldade pra falar… pra respirar… tá me faltando o ar… quase sem fôlego… acho que vou morrer… tenho muito cansaço… acho que já tô morrendo… dizem que não tem mais oxigênio… não é justo… já trabalhei muito… paguei meus impostos… e os meus filhos… meu Deus… tenho 3 filhos… se eu morrer… quem vai cuidar deles agora… acho que já tô morrendo… quase sem fôlego… quem vai cuidar dos meus filhos… tão dizendo que eu não sou o único… que muita gente vai morrer… sufocada… sem conseguir respirar… dizem que o governo podia ter comprado vacina e não quis… por quê meu Deus… se tivesse comprado vacina na hora certa… vacinado todo mundo no tempo certo… muita gente inocente não teria morrido… muita gente que ainda vai morrer… por culpa desses desgraçados… a gente vota que nem besta nesses caras e pra quê… pra quê meu Deus… pra morrer à míngua depois… acho que é isso que tão querendo… ver todo mundo morrendo à míngua…

Cezar teve vontade de chorar ao ver o depoimento daquele moribundo, que falava com dificuldade, revelando um desespero calmo, com olhos aguados, brilhantes, mas dum brilho vidrado, sem vida, sem a vontade de continuar vivendo.

Pensou no cunhado numa cela, talvez já devorado pelo remorso por deixar as crianças aos cuidados apenas da mãe. Então perguntou a si mesmo quantas tragédias teriam sido evitadas se as autoridades tivessem se preocupado verdadeiramente em atender às pessoas… quantos milhares de vida teriam sido salvos se não houvesse o negacionismo.

Por que o obscurantismo voltava com força total? Disputas políticas, ele pensou, egos inflados e ganância desmedida, sede de poder e nenhuma preocupação com o povo. Mas acreditava que a narrativa da morte seria sempre a perdedora, embora o medievalismo viesse bater à porta muitas vezes.

O atendente pôs o cartão de Cezar na maquininha e disse sem tirar os olhos dela, como se falasse consigo mesmo:

- Isso tá errado, cara, tá muito errado. Isso ainda vai causar revolta, escreve aí o que eu tô dizendo, muita revolta. Você viu aqueles vagabundos que entraram aqui agora há pouco? Tão usando isso pra roubar a gente agora.

8

Cezar deixou as crianças com a mãe.

Arlete tinha feito uma consulta com a psicóloga e, embora medicada, era visível seu abatimento. Com olheiras profundas e a voz um pouco alterada, ia procurando falar com os filhos sobre outros assuntos, desviar as atenções deles da morte da avó e da prisão do pai. Até que encontrou força e ânimo para inventar um joguinho como distração e passatempo. Cada um deveria escrever no pequeno quadro-negro uma breve dissertação sobre suas intenções numa próxima viagem de férias.

João Paulo foi o primeiro a escrever na lousa com giz azul e vermelho, destacando em vermelho a frase “tô me sentindo mal” e depois em azul “mas vou ficar bem pra ajudar meu pai a sair da cadeia”.

Arlete ficou emocionada com aquilo e quase chorou, mas se conteve, concordando com João Paulo e o abraçou com força. Maria Elisa escreveu em amarelo, branco e rosa: quero brincar com minhas amiguinhas e chamar elas pra vir aqui em casa tomar limonada com biscoitos. De repente ela se voltou para a mãe e perguntou alegremente:

- Mamãe, posso chamar a Heloísa, a Mariana e a Bete pra vir brincar comigo?

A mãe fez que sim com a cabeça.

Enquanto ela procurava entreter as crianças, Cezar foi até o escritório, com a promessa de voltar dali a pouco com uma grande pizza para o lanche. Falou com colegas no escritório sobre os últimos acontecimentos, mexeu em alguns papéis em sua mesa e logo saiu em direção ao supermercado.

O tráfego estava lento. Muita gente buzinando e gritando dentro dos carros. Ele descobriu um protesto um pouco à frente. Talvez o protesto tivesse sido anunciado com antecedência na mídia, mas ele se viu surpreso diante daquilo. Estava nas ruas centrais da cidade.

Muitas pessoas, em número de 2 mil a 3 mil, aproximadamente, ele arriscou. Carregavam faixas com os dizeres MARCHA PELA VACINA, QUEREMOS SER VACINADOS e NÃO VAMOS MORRER SUFOCADOS. Outros dizeres pipocavam aqui e ali entre a multidão visivelmente enfurecida, gritando palavras de ordem, xingando políticos e empresários que consideravam mal-intencionados.

A certa altura Cezar foi obrigado a parar devido ao número crescente de pessoas aderindo ao protesto conforme iam avançando pelas ruas. Ele desceu do carro e se encostou na porta, de braços cruzados, prestando atenção e intrigado com o aumento dos participantes. Até ali, ele, também revoltado com a falta de ação do governo no enfrentamento da pandemia, não imaginava que houvesse tanta gente na cidade na mesma situação.

No outro lado da rua, um sujeito falava a uma emissora de tevê:

- Cadê as vacinas? É o que agente quer saber! Agora tão falando que o governo se recusou a comprar 100 milhões de doses! Que pouca vergonha é essa? Que descaramento! Enquanto o mundo todo corre atrás dessas benditas vacinas nosso governo posa de durão e diz que não vai comprar! Que brincadeira macabra é essa? Se isso for verdadeiro, esse governo se tornou um aliado do vírus e tá contribuindo pra matar o povo! São assassinos! Aliados desse maldito vírus! Quantos inocentes estariam vivos se tivessem sido vacinados a tempo, se o governo tivesse comprado os imunizantes na hora certa. Mas, isso, se não fossem negacionistas e não tivessem politizado o remédio! Enquanto isso, tamos morrendo à míngua nas mãos desses crápulas, como uma sociedade de zumbis, sem dinamismo, sem vontade própria! Submissos aos desmandos de incompetentes que insistem na politização e na estupidez!

As pessoas gritavam e aplaudiam ao lado do rapaz usando uma fita verde-amarela na testa. Cezar concordou em silêncio com aquelas palavras. Mas em seguida, como se pensando mais sobre o assunto, aplaudiu vigorosamente também, com gestos ostensivos, querendo mostrar simpatia à “causa”, erguendo os punhos como se pronto a lutar. A PM acompanhava tudo de longe, discretamente, sem uma interferência direta, já que os ânimos não pareciam tão exaltados e por enquanto a coisa permanecia sob controle. Até que foram chegando outros grupos rivais, pró-governo, igualmente dizendo palavras de ordem e se pondo a agredir verbalmente os adversários.

De repente, sem saber ao certo porque ia se sentindo daquele jeito, num efusivo estado de espírito, se imaginou marchando à frente do protesto, liderando aquela gente, aos gritos raivosos, batendo um bumbo de tamanho médio como um oficial militar liderando seus seguidores a passos largos. E riu consigo mesmo, pois aquilo tudo, a cena engendrada da marcha espalhafatosa e da liderança, era contrário à sua personalidade calma, ponderada, sem grandes arroubos, distante dos ímpetos comuns de querer se mostrar ou surgir como protagonista numa ação.

Ele continuou observando a cena toda, desconfiando que o caldo podia entornar dali a pouco se os insultos, desaforos e ofensas entre os participantes fossem crescendo, como já ia acontecendo.

Poucos minutos depois parecia tomar conta das ruas um verdadeiro confronto entre grupos opostos, com hostilidade crescente configurando uma batalha campal com pedras e pedaços de madeira, entre outros objetos, atirados de lado a lado. A PM se aproximou e foi tentando conter os mais exaltados.

Quando a coisa estourou para valer, houve uma tentativa de dispersão com balas de borracha e gás lacrimogênio. Ouviu-se um disparo no meio da multidão. Imediatamente um policial atirou na direção do disparo, fazendo muitos correrem, deixando um grande círculo aberto no centro da praça de guerra… e um corpo caído ali. Em seguida alguém constatou que o homem estava morto. Era já um cadáver. O odor da morte, então, se espalhou lúgubre no anoitecer de horizonte vermelho de vaticínio agourento.

9

Cezar interpretou aquele volume de acontecimentos das últimas 24 horas como algo fatídico tomando forma, se adensando na escuridão - monstro metódico prestes a atacar. Protestos crescentes e a fúria da população - uma parte contra o sistema e outra parte disposta a defender o governo até o fim. É o cenário para uma tragédia, pensou, já se levando em conta as centenas de milhares de mortos na pandemia.

E o cheiro da morte se espalhando sobre tudo, entrando pelos vidros semi abertos dos carros e dos ônibus do transporte coletivo; pelas janelas e portas das casas e dos apartamentos; adentrou as narinas das pessoas, das crianças, dos velhos e dos adultos em geral. Aquele odor adstringente ia se espraiando, causando pressentimentos e vaticínios nefastos na noite agora silenciosa, amortecida pelos símbolos agourentos da violência e da brutalidade. A polícia andava matando exageradamente, diziam, com notória insensibilidade e desprezo pela vida.

Alguns tinham vontade de chorar; outros iam pensando em defender a todo custo seu patrimônio e suas vidas. Por que as autoridades davam demonstrações errôneas entre si, transmitindo informações contraditórias sobre como devia ser o comportamento geral diante da pandemia. Uns ouviam esse, outros ouviam aquele; ninguém sabia ao certo como se comportar ou o que fazer diante de tal descalabro. A maioria insegura, amedrontada e começando a enlouquecer quase. Como resultado final, um coletivo conturbado e perdido em meio ao desastre de tantas mortes.

Existiam até os que pensavam em sair atirando nos que se mostrassem contrários ao governo, num arroubo de poder e vontade de dominar, fazendo com que a democracia corresse o risco de perder suas qualidades essenciais e se transformasse numa outra coisa, num outro sistema, sem o respeito à diversidade de opiniões e diferenças em geral. E o governo, dizia Cezar a si mesmo, em vez de assumir com responsabilidade e competência seu papel de autoridade frente a população, preferia se esconder atrás das fake news e arroubos infantis de demonstração de falsa popularidade. Que gentinha miúda, pensava, ficam brigando entre si em vez de trabalhar, parecem moleques de rua, encrenqueiros e irresponsáveis, em vez de atuarem como homens de governo.

10

Tinha conseguido chegar ao supermercado apesar de tudo.

Deixou o carro no estacionamento e entrou na loja, um local bem iluminado e com número considerável de consumidores se agitando para cá e para lá. Pensou em comprar pizza e refrigerante para os sobrinhos e algum tipo de doce que pudesse funcionar como sobremesa. Depois mudou de ideia e trocou uma goiabada por um pote de sorvete de morango e ameixa. As crianças adoravam sorvete de morango e ameixa.

Diante duma gôndola de bebidas, esteve em dúvida se pegava ou não umas latas de cerveja. Não era de beber muito; às vezes ia num churrasco com amigos ou colegas, sendo, entre eles, o que bebia menos, duas ou três latas de cerveja, até uma ou duas doses de destilado, mas isso raramente. Nessas situações, percebia que se via bastante atraído por uísque ou conhaque, mas procurava fugir de tais gostos, quase sempre tentando recordar os problemas causados pela bebida ente amigos e conhecidos.

Agora, diante da gôndola, tinha muita vontade de beber, talvez levado pelos últimos acontecimentos. Acreditou que a cerveja pudesse trazer um certo alívio, atenuar um pouco a carga psicológica negativa se acumulando em sua mente nos últimos tempos. Aproveitou a ocasião e pegou um vinho para a irmã.

Aproveitou também para comprar máscaras para si mesmo, para Arlete e os sobrinhos. Reparou que quase todo mundo ali dentro usava máscara, ao contrário das ruas, praças e outros lugares públicos, em que uma parte da população insistia em desafiar o bom senso, evitando o uso delas e o distanciamento social. Acreditava que algumas pessoas não estavam inteiramente convencidas das medidas fundamentais de proteção, agindo ostensivamente como crianças rebeldes em meio às aglomerações e locais de uso público ou comunitário. Provavelmente era um comportamento incentivado por autoridades governamentais que insistiam em confundir a população com informações desencontradas.

Ao ver o carrinho praticamente cheio de produtos, ele se arrependeu, sentindo mesmo um certo remorso, ao recordar os pobres e àquela altura os muito famintos que tinham perdido o emprego. O auxílio emergencial não chegava a todos que estavam em situação de penúria. Não saía também de sua cabeça a cena do cadáver de agora há pouco na praça. Pensou na família do morto, se ele tinha filhos, se os filhos teriam o que comer.

Depois de passar o cartão de crédito no caixa, pôs tudo numa caixa de papelão de tamanho médio e, num arranco potente do braço musculoso, praticamente a jogou sobre o ombro esquerdo e se preparou para sair. Ao fazer menção de se lançar na direção da porta, estacou surpreso, paralisado, a poucos passos da saída. Um pouco assustado, e ainda sem entender muito bem o que se passava, deparou com a pequena multidão se aproximando agressivamente, agitando os punhos, com olhares ferozes e expressões raivosas, gritando palavras que a princípio soavam confusas, mas em seguida pôde entender: aquilo era uma invasão. Estava havendo um ataque ao supermercado.

Havia gente de todo tipo, a maioria sem máscara; velhos, jovens, homens, mulheres, crianças, brancos, negros etc, entrando ali alvoroçados, barulhentos e desde já hostilizando clientes e funcionários, chutando e esbarrando em gôndolas e se apossando com violência das mercadorias, se livrando com gestos bruscos do que não lhes servia, alguns muito brabos e outros rindo e até eufóricos. Pareciam um bando de malucos, enlouquecidos, sem saber muito bem o que estavam procurando ou o que significava aquilo tudo. Iam pegando e catando o que podiam, enchendo o espaço entre um braço e outro e saindo às pressas sem olhar para trás, pela mesma porta que haviam entrado.

11

Era um saque. Estavam saqueando a loja e Cezar, bastante surpreso e admirado com a situação inusitada, ainda foi capaz de se perguntar se aquele tipo de coisa ia acontecendo também em outras partes da cidade, em outras lojas. Acreditou que aquelas ações, nem tão incomum em outros lugares e épocas, acontecia ali por um motivo especial devido à pandemia, ou seja, um ato diretamente ligado à incapacidade do governo em lidar com catástrofes e situações calamitosas. Um governo inexperiente, irresponsável e incompetente. Alguém teria de fazer alguma coisa.

Alguma coisa tinha de ser feita. Com aquelas palavras ecoando em sua cabeça, intuiu que a polícia ia chegar ao local dali a pouco e, antes que alguém resolvesse convidá-lo a depor sobre o ocorrido, se agarrou ferrenhamente à sua caixa com as compras, temendo, àquela altura, com toda a razão, ser atacado pelos invasores, e saiu em disparada na direção do carro no estacionamento da loja.

Que se lascassem, pensou, não seria ele o otário a dar declarações sobre os furtos de um bando de esfaimados, de uns miseráveis mortos de fome que nem tinham o que comer em casa, com certeza um crime menor e menos importante num país de políticos e empresários corruptos. Se lembrou que um dia alguém havia dito a ele: “roubar pra comer não é pecado”. Aquilo o deixou de consciência mais ou menos tranquila.

Enquanto dirigia de volta a casa, ia pensando na alegria e satisfação das crianças com a pizza e o sorvete, entremeando esses pensamentos com algum arroubo heroico de sua parte frente aos integrantes da invasão no supermercado, mas agora, ao contrário dos momentos de indiferença de pouco tempo atrás, ressurgia como cidadão enraivecido e furioso contra os saqueadores, sem saber ao certo o porquê, já que, no calor da coisa, parecia se ter identificado e até apoiado e torcido por eles e com eles.

Ao flagrar essa contradição gritante em suas lucubrações enquanto dirigia, tentou se justificar se sentindo meio moleque, quase uma criança de convicções ainda não formadas, admitindo a si mesmo em seguida uma certa necessidade de reações e comportamentos infantis – era o seu momento menino, um instante contraditório, aquela parte a que todos têm direito uma vez ou outra, mas que permanece escondida, aflorando em certas ocasiões da vida. Na verdade isso pode ser também uma estratégia até inconsciente no intuito de desanuviar o ambiente lúgubre que se vai adensando às vezes - no qual se pode ir penetrando quase sem perceber.

Então começou a rir sozinho no carro, ao se ver distribuindo pontapés, rasteiras e tabefes entre os invasores, cuidando para não atingir mulheres e crianças. A ele se juntaram outros agressores, entre funcionários e clientes revoltados com a situação, conseguindo expulsar os delinquentes e em seguida recebendo os parabéns das senhoras presenciando a cena. Tudo com direito a entrevistas a rádios, jornais e emissoras de tevê.

12

As crianças se mostraram pouco entusiasmadas diante da pizza, afinal, seu pai estava preso.

Arlete pôs a pizza no forno enquanto ia bebendo uma taça de vinho chileno, escolhido a dedo por Cezar, que conhecia o paladar exigente da cunhada. Ele bebeu suas latas de cerveja e até se arrependeu de não ter comprado um uísque, ou uma vodca, ao se sentir um pouco mais leve e menos preocupado. Mas não deixou de pensar em fazer um churrasco no fim de semana com direito a caipirinha. Ia aumentando aos poucos sua vontade de ingerir bebidas destiladas.

Perguntou à cunhada se queria que ele viesse pegar as crianças para o colégio na manhã seguinte, mas ela respondeu que eles não iriam à escola por enquanto. E para a próxima semana já haviam anunciado a suspensão das aulas presenciais.

- Esse corona – ela disse desanimadamente – tem mexido com a vida da gente, revirando mundos e fundos, não é verdade?

Cezar balançou a cabeça positivamente, apesar de que, àquela altura, ia já atribuindo à incompetência e irresponsabilidade governamental as reviravoltas e tribulações causadas pela Covid-19, afinal, matutava, poderia ter havido um preparo maior e mais eficiente no enfrentamento da peste.

Ele ia ficando revoltado cada vez mais, dominado pela vontade de fazer alguma coisa por conta própria diante da ausência de reações da sociedade como um todo - que já considerava como a um bando de mortos-vivos. Pareciam zumbis, seres sem vontade própria, sem iniciativas. Mas o que poderia fazer? Não tinha a mínima ideia por enquanto, só o desejo de agir de alguma forma... sem saber como.

Então se despediu da cunhada e das crianças e foi para casa.

Era uma quitinete mobiliada humildemente, com os móveis necessários apenas ao bem estar de uma pessoa. Estava querendo descansar, dormir um pouco ao menos.

Mas não foi capaz de cair no sono de uma vez, ao se deitar, como acontecia sempre ao estar com o espírito leve, tranquilo, repassando alguns acontecimentos diários. Dessa vez não foi assim. Parecia inquieto, transtornado, preocupado mais do que devia com algumas coisas que fugiam ao seu controle.

E teve um sonho bizarro de madrugada. Estava numa sala escura, mal iluminada, amarrado numa cadeira, tendo em frente um personagem que parecia mais uma caricatura de desenho animado e ao mesmo tempo o xerife dum filme antigo, mas que se autodenominava presidente da República das Bananas, com duas cartucheiras cruzadas sobre o peito e vários cinturões municiados, brandindo lentamente um três oitão na mão direita, quase esfregando a arma no rosto de Cezar.

O tal presidente conversava com ele de modo autoritário, prepotente e arrogante, querendo intimidá-lo, incriminando-o por algum delito cometido mas sem especificar que crime seria esse:

- Então você é um malandro que quer fugir da justiça? Da aplicação da lei e da imposição de uma pena justa, hein! Da IMPOSIÇÃO duma pena justa?! Seu safado! Você é mesmo um grande safado!

Cezar respondia de cabeça baixa.

- Não sou um grande safado. Não sou nem mesmo um pequeno safado. Não sou nem safado pra falar a verdade.

Acordou em pânico, sem saber porquê, sem um motivo aparente, mas suando frio, quase febril, se pondo de pé num salto brusco ao lado da cama, perscrutando com olhos assustados cada palmo do monstruoso breu compacto do cômodo. Em seguida concluiu aliviado que estava mesmo em seu quarto, seu velho e pequeno quarto, e que aquele sonho não tinha nenhum motivo para deixá-lo temeroso, exceto por uma suposta personificação do tal xerife… sim, era como se aquele homem sinistro, que se dizia presidente da República das Bananas, fosse a própria morte, como se tivesse assumido a grotesca e nefasta tarefa de esparramar milhares de cadáveres sobre a face da terra, chamando a si tal ato lúgubre.

Pouco depois caiu no sono outra vez, espantando as imagens nefandas de corpos sem vida e presidentes grotescos.

13

Foi despertado de manhã ao toque do celular. Era seu pai contando as novidades. Houve uma invasão, ele disse, agora há pouco, por um bom número de pessoas, na ubs da zona Norte, no Jardim Figueira, uma região conhecida como antro de traficantes, contrabandistas e homicidas em geral, tida como das mais violentas da cidade. Entraram gritando e exigindo vacinas para todos, revoltados com o anúncio, no dia anterior, da diminuição na quantidade de imunizantes para aquele local.

Cezar sabia que, no geral, aquilo integrava um pacote maior de incompetência e irresponsabilidade, como parte da estratégia do governo federal para camuflar a escassez de vacinas (após a recusa em adquirir 100 milhões de doses), fazendo a coisa toda em conta-gotas, bem devagar para não despertar a ira do povo, (mas que ia dando errado), anunciando uma redução aos poucos, temendo uma revolta em massa, agora enfrentando dificuldades para uma negociação a contento com os fornecedores.

Enquanto tomava café com torradas e ovos fritos, ele ia se perguntando, mais uma vez, com um sentimento de impotência e nojo, o que leva um governo e se recusar a comprar vacinas para a população, enquanto outros povos correm desesperados atrás delas.

Acreditava ser muito simplória a explicação de que as cláusulas contratuais eram muito duras, ou que o atual presidente não acreditava na eficácia da vacina, que duvidava dos resultados científicos dos testes em vários sentidos etc. Ora, aquele negócio parecia estar sendo feito com método, isto é, com preparo estudado, com antecipação deliberada para espalhar o medo, a destruição e a morte entre os inocentes.

Por quê não comprar vacinas, meu Deus?! O que pode haver por trás de tamanho disparate? Coisa boa não pode ser, ele deduzia, afinal, as autoridades andavam pisando na bola a torto e direito, sobretudo em se tratando do enfrentamento à pandemia.

Ao chegar ao escritório, ouviu alguém bradar: nosso último dia juntos aqui, Home Office a partir de amanhã. Houve um zum-zum generalizado entre os 20 funcionários em seus cubículos separados por paredes envidraçadas. Alguém comentou sobre o afastamento das funções do policial que matara um homem no protesto. Falaram também do saque no supermercado e da invasão da ubs, além da morte, por covid, de sicrano e de fulano. O vírus diabólico espalhando o terror.

Cezar intuiu que ainda não estava vivendo nem dez por cento do horror que o vírus poderia espalhar sobre o país. E teve vontade de chorar. Não era medo de morrer - ou por covardia diante da tragédia - mas pelos inocentes que estariam sendo salvos se houvesse vacina para todos.

E o cheiro da morte se espalhando sobre tudo e entre todos, numa lúgubre simbologia da tragédia e do fim. Uma verdadeira multidão de mortos carregada aos crematórios e cemitérios. O abc da destruição final, hip hurra, somos uma fábrica de esquifes, uma gigantesca e horripilante fábrica de esquifes que se renova todas as manhãs, ao som das marteladas e das cornetas anunciando o terror, lá vamos nós, estamos indo, cara, estamos indo! Para onde, ninguém sabe. Muito menos esse governo desorientado e incompetente que insiste em ignorar os sinais promissores da ciência e investe no fim do mundo.

Sentiu uma lágrima escorrendo. Passou a mão depressa no rosto, não queria parecer um bobão amolecido, se derretendo diante dos colegas. Sempre tivera o coração mole, se dobrando aos menos favorecidos ou aos sofredores dum modo geral, mas agora era preciso se fazer de durão, ou até, quem sabe, se transformar mesmo em alguém de coração endurecido. Com a morte rondando a todos, entre ricos e pobres, brancos e negros, velhos e jovens, homens, mulheres e crianças, era preciso mesmo ser durão.

14

Sentia uma revolta crescente queimando seu peito inflamado e, ao contrário da pessoa pacata que sempre tinha sido, agora um incômodo agitava sua alma, sua mente, todo o seu ser, no sentido de aniquilar uma calma e a tranquilidade que, na maioria das vezes, havia pautado sua vida até ali.

Um sentimento de urgência parecia tomar conta de suas apreensões, como se alguém estivesse pedindo, ou exigindo, que se fizesse alguma coisa, que se tomasse providências contra o vírus e o crescimento das contaminações. Achava revoltante a forma como vinha sendo feito o enfrentamento à pandemia, as reações diante da peste.

A sociedade de um modo geral parecia não se importar com o jeito inadequado no tratamento à coisa toda, sobretudo com a negligência do governo federal, dum governo que normalmente deveria cuidar para barrar a transmissão e as contaminações e que teria de se mostrar aplicado nas contenções, coerente com o resto do mundo na reação à pandemia.

A passividade social frente aos desmandos governamentais, sobretudo ao número crescente e assustador de mortes, trazia à mente de Cezar uma exigência, um grito, um brado: alguém precisa fazer alguma coisa!

Mas quem irá fazer alguma coisa, ele se perguntava. E o que poderá ser feito? Quem será esse herói? Uma onda de arrepio percorria o seu corpo, fazendo-o estremecer da cabeça aos pés. Um sentimento estranho, desconhecido, tomava conta dele, jogando-o num abismo de interrogações, dúvidas e medo. Existiam muitas perguntas sem resposta ainda.

Era quase como estar chamando a si uma responsabilidade que seria de todos, mas, como as pessoas, atualmente, se assemelhavam mais a zumbis que a outra coisa, ao contrário de uma gente dinâmica, de um povo decidido e disposto a agir, então acabou intuindo que uma solução teria de, forçosamente, passar por ele! Sim, por ele mesmo, embora por enquanto não tivesse ideia de que solução, fosse qual fosse, seria aquela, apenas desconfiando vagamente, como um sentimento ainda adormecido mas aguardando seu momento.

De qualquer forma, sentia que teria de partir dele, ou quem sabe, talvez até de outra pessoa que se visse igualmente revoltada. Enquanto isso, ele ia se transformando aos poucos em alguém mais forte, com a clara consciência de que algo muito errado estava acontecendo no país.

Quem terá de fazer alguma coisa? E que coisa será essa? Eram perguntas para as quais ainda não tinha respostas. Mas, diante do descaso no enfrentamento à pandemia por parte das maiores autoridades do país, acreditava que não seria possível continuar vivendo normalmente, como se nada houvesse acontecido, sobretudo porque, diante de tão violenta crise, já não havia uma normalidade - mas desastres e mortes sem fim.

15

A pandemia trouxe muitas transformações na vida das pessoas, na maneira de se comportar e mesmo na forma de enxergar ou interpretar o mundo, induzindo uns a verem a si mesmos e aos outros com maior benevolência, com mais humanidade e empatia, mas também levando outros a se trancarem em suas conchas, cheios de preconceito e medo. Também mudanças positivas na forma de ver ou entender como seria o enfrentamento ideal de uma doença.

Uns apoiavam tudo o que as autoridades faziam, mesmo quando elas erravam descaradamente – e se tornava evidente que erravam cada vez mais a despeito da orientação e dos conselhos de organizações médicas, sanitárias e de organismos internacionais de Saúde. Outros se revoltavam ao verem crescer as chances de a tragédia se tornar incontrolável. Cezar integrava esse último grupo.

Uma transformação vinha se operando em seu espírito, devagar, sem que se desse conta a princípio, não percebendo claramente as alterações sutis, mas enxergando uma boa parte dessa metamorfose.

Surpreendeu-se outra vez, se achando admirado diante daquela mudança, afinal, se ele se via, pelo menos até ali, como a um sujeito normal, sem rancores marcantes, livre de sentimentos negativos duradouros, como ódio ou vingança, por exemplo, notou que tal imagem já não correspondia à realidade. Sentia-se angustiado e até meio deprimido, embora ostentasse uma saúde mental invejável ao longo do tempo.

Então aconteceu algo diferente. Os sentimentos confusos foram dando lugar a uma euforia incipiente sem razão aparente, talvez até pelo fato constatado que teria de buscar mudanças na vida, era agora ou nunca, havia chegado a hora H. Diante de tudo que ia acontecendo, da pandemia, do desespero das pessoas, do medo generalizado do vírus e das doenças, do sofrimento sem fim numa fila à espera dum leito na UTI, da falta de oxigênio e das mortes por asfixia, enfim, diante das demandas por novos estilos de vida e das tentativas de se criar um mundo melhor, ele acreditou que também teria de mudar.

Mudar para viver melhor – ou ao menos tentar viver de forma mais adequada aos novos tempos. Embora se considerasse às vezes como a um fracote, ainda que fosse possuidor de bom estoque de amor-próprio e duma autoestima relativa em conformidade com os padrões gerais, agora entendia que teria de buscar outros tipos de transformação, mesmo se tivesse de se transmutar em valente e corajoso lutador por algo mais em sua própria vida.

Viu que uma coisa simples faltava em sua rotina, abrindo mão, nesse caso, de se tornar o herói em busca de soluções para os problemas da população. Esqueceu por uns momentos a covid, as mortes aos centenas de milhares, o sofrimento das pessoas etc, e num clique repentino, se vendo no espelho um tanto desanimado e cabisbaixo, pensou descobrir o que julgava estar errado em sua vida, ou supôs que fosse aquilo: a solidão. A falta de uma namorada.

Apesar de se dar bem com a irmã e os sobrinhos, de manter uma convivência fraterna e bastante amigável com eles, sobretudo agora, nesses últimos tempos de pandemia, e principalmente após a morte de dona Julia e do desatino e a prisão do cunhado, compreendia que uma mulher pode ser essencial na vida dum homem.

Terminara um namoro há um ano, um pouco antes do início da pandemia, uma relação que tinha sido boa no começo mas acabara caindo numa rotina monótona sem grandes momentos, ocasionando um rompimento previsível e de comum acordo com a namorada, sem lances mesquinhos e costumeiros de um querer jogar a culpa no outro por algo que já não dá certo.

O distanciamento e o isolamento social tinham passado a ditar novas normas de comportamento. Não que impedissem rigorosamente os contatos, novos conhecimentos e relações, mas dificultavam em parte encontrar a pessoa para uma nova convivência, alguém especial para se tornar a companheira no dia a dia sem muitas diferenças e desacertos. A pandemia se transformara no assunto principal na maioria das conversas, quase sempre impedindo ou dificultando outros tipos de contato, deixando em segundo plano, por exemplo, os arranjos entre casais.

16

Cezar acreditou que havia chegado o momento de começar um novo relacionamento. Procurar uma namorada, a companheira ideal, quem sabe, aquela que se pudesse transformar no melhor antídoto contra a angústia e a depressão nos dias atuais.

Ele relembrou os bons momentos ao lado de Renata, a ex-namorada, quando os dois se divertiam nas pizzarias, cinemas e motéis, antes de juntarem os trapinhos sob o mesmo teto. Mas, quando passaram a morar juntos, a coisa toda foi perdendo aos poucos o encantamento, o fascínio dos primeiros dias na casa nova e os prazeres do sexo dum casal que, no início, como a maioria dos casais, parecia estar no Paraíso, cada um se satisfazendo com a beleza e as peculiaridades do outro, numa cumplicidade aparentemente perfeita e cheia de compreensão de ambas as partes.

Só que algum tempo depois tudo ruiu, e as singularidades do começo foram se tornando coisinhas desagradáveis e a beleza se transmutando em feiura quase, em meio às pequenas discussões e desavenças, descambando, enfim, para uma ruidosa e gritante incompatibilidade de gênios.

Os dois, então, tinham concluído que os desacertos entre eles eram um princípio de desentendimentos incontornáveis para um bom relacionamento.

Mas, além disso, da solidão e da ausência duma namorada, outros dois episódios vinham pontuando negativamente em seu espírito conturbado nos últimos dias: a morte da sogra da irmã e a prisão do cunhado. Embora não o atingissem diretamente, estavam ligados a pessoas do seu intenso querer, a irmã e os sobrinhos. Sempre se dera bem com Arlete e, por tabela, com seus primeiros e únicos sobrinhos.

Existiam outras coisas também em sua cabeça, impulsionadas por seu novo jeito de ser, se reestruturando frente às apreensões e atitudes então consideradas urgentes. Viu-se surpreso mais uma vez, no sentido de estar aberto a mudanças sem se recriminar, sem considerar tal transformação como a um fardo difícil.

Pensou imediatamente na pequena poupança que mantinha no banco. Desemprego em alta devido à pandemia, muita gente perdendo o salário e o poder aquisitivo lá embaixo. Recordou a invasão e os saques no supermercado. De modo que seria normal a vontade de contribuir e ajudar de alguma forma aqueles que mais precisavam.

Fez as contas e chegou à conclusão que o dinheiro da poupança seria suficiente para comprar e distribuir, no mínimo, algumas dezenas de cestas básicas. Entre a urgência de se atirar a um novo relacionamento e a emergência em que se transformara a situação de fome das pessoas, decidiu esperar um pouco mais pela namorada e foi ao supermercado em busca de cestas básicas.

Sentiu-se bem agindo daquele modo, se achando importante no sentido de contribuir para aplacar a fome e a falta de alimento dos mais pobres, indo alegremente às compras.

Com aquela grana foi possível levar trinta cestas básicas à comunidade Aifa, na periferia da cidade. No caminho, pensou sobre aquela denominação, Aifa, numa região que geralmente adotava para as favelas nomes próprios de antigos e influentes moradores ou apelidos pitorescos ligados aos bairros próximos, aos locais conhecidos por afazeres característicos e singulares, hábitos de plantações ou epítetos estrangeiros. Era curioso mas nem tanto estapafúrdio, disse a si mesmo, e encerrou o assunto.

Procurou logo o líder do lugar e expôs a situação, temendo algum mal-entendido por parte dos valentões e xerifes da comunidade, traficantes ou quem quer que fosse. Explicou de cara que apenas a boa vontade e o interesse genuíno em ajudar o próximo o trazia até ali. O líder da favela acreditou em Cezar, considerando-o um tanto sincero e cheio de boas intenções, mas o preveniu de que tivesse mais cuidado ao entrar ali se pretendesse voltar mais vezes e passou a ele um número de celular para o caso de novas visitas.

17

Cezar se comoveu ao ver de perto a fome nos olhinhos das crianças, nas expressões das pessoas, sobretudo nas mulheres que apareciam com bebês no colo ou arrastando criancinhas pela mão. Era uma comunidade com aproximadamente 5 mil moradores, a grande maioria de gente honesta e trabalhadora, ele imaginou, e uma grande fábrica de sofrimento e desatenção das autoridades - que deixavam tudo ali nas mãos de gente muitas vezes inescrupulosas e aproveitadoras.

De repente uma mulher de meia idade, razoavelmente bem vestida, de cabelos amarrados atrás, irrompeu entre as pessoas, chorando, gritando e agitando os braços em desespero, as mãos estendidas para o alto e implorando a Deus numa prece improvisada debaixo de um céu violáceo do quase anoitecer. Ela pedia e gritava a Deus, implorando que salvasse seu filho de vinte e cinco anos, em estado crítico na fila à espera dum leito na UTI no Hospital de Clínicas.

- Oh, meu pai do céu – ela dizia olhando para Cezar como se ele pudesse ajudar de alguma forma -, traz meu filhinho de volta pra casa, não deixa ele morrer, não, meu pai, meu Deus, meu pai eterno, salva meu filho… não deixa ele morrer…

Cezar abaixou a cabeça, fulminado por todo aquele sofrimento, aquela angústia trazida e alimentada cada vez mais por um número maior dos familiares dos doentes, contaminados e mortos. A mulher se aproximou dele, chorando, pedindo alguma providência com os olhos aguados, vermelhos e tristonhos. Sem saber o que fazer, como reagir ou consolar a senhora, ele a abraçou, simplesmente, acreditando que ao menos podia demonstrar um pouco de compaixão com o sofrimento alheio, como se ela fosse mais uma daquelas criancinhas desamparadas pelo poder público e pelos governantes em geral.

Pouco depois, a mulher recebeu a notícia que ninguém quer receber; o filho havia acabado de morrer no hospital, aniquilado pela Covid-19. Um garoto de 25 anos, pensou Cezar, mais uma vítima da falta de vacinas, da incompetência e do descaso do governo federal que, demonstrando desfaçatez e imoralidade, tinha se recusado a adquirir milhões de doses.

E o cheiro da morte penetrou todos os lares, todas as narinas, debaixo de todos os tetos e cobertores. Seus ruídos rondaram ouvidos, cabeças e pensamentos, numa dança fúnebre, horripilante e aparentemente eterna. O medo da fatídica ceifadora atingiu todos os sensatos, todos os pobres e ricos, homens e mulheres, crianças, jovens e velhos. Atingiu todos aqueles que buscam a vida, menos os tolos, os prepotentes e os canalhas. Os ruídos catastróficos da morte, com seus sons guturais e lúgubres, iam avançando, paralisando a decência, a honradez e a prudência, através duma mensagem repleta de ameaças cumpliciada com os negacionistas.

18

Cezar não estava habituado a certos tipos de sentimento, como a revolta excessiva, ódio contínuo etc. Não gostava daquilo em que se ia transmutando. Não era saudável. Especialistas são unânimes em afirmar que sentimentos negativos se tornam essencialmente prejudicial à saúde. Ele sabia.

Chegou cansado em casa, ligou a tevê de 32 polegadas e deu de cara com a notícia da morte de 47 pessoas na cidade, nas últimas 24 horas, vítimas da Covid-19. Três mil e cem no país todo em 24 horas. Abaixou a cabeça e pensou que a normalidade da vida estava irremediavelmente perdida, por causa, em boa parte, da negligência governamental na condução da crise.

Seria preciso agir. Alguém tem de fazer alguma coisa, repetia baixinho. Depois de tantas mortes, de tantos inocentes morrendo à míngua ou asfixiados à espera dum leito na UTI, não seria possível fazer cara de paisagem e continuar como se nada estivesse acontecendo. Acreditava que todo mundo estava chegando em seu momento crítico, com o aumento da violência nas ruas, brigas entre parentes e vizinhos, agressões verbais e físicas, assassinatos por causa de besteira, discussões acabando em tragédia devido a bobagens. As pessoas não se aguentavam mais.

Despiu-se, deixando a roupa suja na lavadora, e foi ao banho.

Depois de fazer um lanche e beber duas latas de cerveja, de 473 ml, voltou a pensar nas mulheres. Agora queria uma namorada. Seria muito bom ter uma companheira novamente. Ligou o computador e procurou um site de mulheres nuas. Precisava descarregar de alguma forma, pelo menos em parte.

Uma grande bunda surgiu na tela, brilhantemente capturada numa pegada magistral da câmera, destacando os orifícios e reentrâncias e dobras da vagina e do ânus e as pregas glúteas. Num ângulo direto de baixo para cima em que a genitália se mostra reluzente, apetitosa e úmida, toda depilada, o homem da câmera parece satisfazer a si mesmo numa cena bastante sugestiva e sedutora, talvez se imaginando no lugar dos internautas destinatários finais do vídeo. A masturbação pode ser um hábito saudável, acredita Cezar. Principalmente aos mais inclinados à solidão e predispostos ao gozo íntimo.

Pouco depois ele foi a um site de relacionamentos e namoros.

Aquele poderia ser o modo mais rápido, seguro e eficaz de conhecer uma mulher, pensou, afinal, havia muita gente sozinha à procura de novos contatos. Ali entrou em conversação com várias garotas, loiras, morenas, negras, lindas e sensuais. Mas uma chamou suas atenções de modo particular. Era especialmente bonita, charmosa, elegante no modo de se vestir, com inúmeras fotos à disposição.

Se puseram a trocar ideias pelo site, a principio, porque logo trocaram os números, passando então às conversas no whatsapp.

19

Maria D’Eu, 35 anos, 5 mais velha que Cezar, parecia muito simpática e sinceramente à procura dum novo relacionamento. Ele não se importou com o fato de ela ser mais velha, enfim, a idade pouco importa se as cabeças se comunicam de forma adequada e os olhares se complementam, era o que pensava.

Tem pipocado notícias aqui e ali referente a crimes, furtos, falsificações e até assassinatos, sobre pessoas que se conhecem na internet. Então Cezar não queria que ela se assustasse, ou melhor, pretendia deixá-la à vontade para decidir quando e como seria o primeiro encontro entre eles. Afinal, moravam na mesma cidade, sendo a distância um problema a menos. Quando resolvessem que tivesse chegado a hora, bastava andarem uns poucos quilômetros e pronto, estariam juntos fisicamente. Enquanto isso, iam trocando mensagens pelo whatsapp.

Maria D’Eu e Cezar pareciam próximos dum casamento perfeito, embora ela fosse separada e não pudesse se casar legalmente ainda. Mas, pouco depois, antes mesmo de se conhecerem pessoalmente, após todo aquela troca de palavras carinhosas no whasapp, ela pareceu perder o ânimo. Foi como se uma força poderosa, antes oculta para então se manifestar traiçoeiramente, se levantasse dentro dela e a fulminasse de repente, sem mais nem menos. Num estalar de dedos, ela soçobrou, como uma embarcação abalroada por inimigos invisíveis. O que parecia caminhar para um relacionamento forte e saudável, de interesses promissores para ambas as partes, se revelou algo embaraçante permeado pelas garras fatídicas do vírus.

Então ela se abriu com Cezar.

- Como eu já disse, perdi minha mãe para a covid, há pouco mais de 6 meses. Entrei no site porque ia me sentindo muito solitária e angustiada com essa perda.

E a confissão se transformou num pedido de socorro:

-Eu sou uma mulher fragilizada, destroçada emocionalmente. Tenha cuidado comigo, ouviu? Porque tenho me sentido como uma bonequinha de vidro que pode se despedaçar se ir ao chão, ou a um toque mais brusco, a um manejo descuidado. Minha mãe era a coisa mais cara, mais importante pra mim. E eu a perdi. Porque a vacina não veio a tempo. Porque um animal estupidificado não quis comprar. Você é capaz de entender isso? Nem eu. Por que um canalha não compra vacinas pro seu povo. Minha mãezinha podia estar viva ainda, eu podia estar com ela aqui, agora, do meu ladinho, se a vacina tivesse chegado na hora certa. Mas não. O que me resta agora é a dor, uma dor muito forte.

- Eu entendo… e compartilho a tua dor.

- E quantos milhares nessa mesma situação, sofrendo, se descabelando e chorando o tempo todo…

- Sim, muita gente…

- Porque um monstro se recusou a fazer o que tinha de fazer… o que tinha de ser feito…

- Porque achou que a gente tava de mimimi e bla-bla-blá…

- Ah, me desculpe, querido, fico te importunando com essas coisas… será melhor falarmos de outras coisas, como antes…

- Não, de jeito nenhum, você não tá me importunando… porque eu também tenho perdido pessoas próximas e ando muito revoltado com isso tudo.

A conversa evoluiu entre os dois, que passaram a se encontrar pessoalmente.

Mas Cezar não conseguia se livrar dum sentimento de angústia, inoportuno e impróprio àquela altura, em pleno desenvolvimento de uma relação que parecia ter tudo para dar certo. Porque, para todos os lados que fosse, que olhasse, que se movesse, havia aquele vírus diabólico o cercando. Havia, aliás, mais do que isso; havia a incompetência das autoridades o oprimindo, o pressionando, sim, porque aquilo era, na verdade, uma pressão, ainda que indiretamente, de algo que ele julgava como sendo a imoralidade das autoridades cafajestes, irresponsáveis e cruéis, já que se considerava um cidadão digno das atenções e dos cuidados de um governo para com o seu povo. Mas, em vez disso, dos cuidados e das atenções, havia os sinais das mãos sujas e cheias de sangue de pessoas abjetas, duma necropolítica carnivoraz dançando sinistramente sobre a putrefação de milhares de corpos, fazendo o cheiro da morte se espalhar sobre tudo e sobre todos. Aqueles eram os traços inconfundíveis e autoritários das decisões dos negacionistas.

20

Nas últimas noites o vinha perseguindo o mesmo sonho, com pequenas variações, com o nefando personagem, o sujeito com olhares alucinados e enlouquecidos, com expressões diabólicas e cartucheiras a tiracolo, além da vários cinturões municiados na cintura: o ilustríssimo senhor presidente da República das Bananas.

- Então você quer me pegar, Cezar Campali? Será que vai conseguir? Ou eu posso acabar com você antes – ele dizia gargalhando, insolente e cheio de ódio. - Não só você, porque eu vou pegar muito mais gente que não aceita a IMPOSIÇÃO da lei e da ordem!

Naqueles sonhos, acompanhando as suas palavras, o ilustríssimo presidente da República das Bananas fazia gestos fortes com as mãos, retorcendo-as, como se esmigalhando entre elas seres frágeis, inocentes e indefesos. Era como se Cezar pudesse ouvir o som se ossos se partindo, sendo despedaçados, triturados.

Em tais ocasiões, ele acordava assustado no meio da noite, pulando da cama e suando, ofegante, olhando inseguro para os lados, para em seguida constatar que ainda estava em seu quarto.

- Ufa – dizia baixinho. - Escapei por pouco dessa vez.

E ria em silêncio, voltando a dormir.

Os encontros com Maria D’Eu iam progredindo, prosperando nas relações e trocas de ideias e planos. Faziam projetos, ela queria morar na praia futuramente, à beira-mar, levantar às seis da manhã para fazer caminhadas, comprar peixe fresco para o almoço. Para convencer Cezar dos seus planos, ela fazia deliciosos filés de linguado na brasa, dourados assados com batatas e molhos especiais, embora ele soubesse que dourado é um peixe de água doce.

Quando, numa noite, na quitinete, ligaram a tevê, estiveram chocados com mais um relato enlouquecedor sobre as consequências da Covid-19. A mulher, jovem ainda, com seus 40 anos, mãe de 3 filhos, quase sufocando numa fila à espera da UTI, tinha sido assassinada pelo próprio marido, que confessou não mais suportar ver o sofrimento da esposa morrendo à míngua, praticamente asfixiada na falta de oxigênio, numa maca, no corredor do hospital. Ele entrara ali com uma pequena lâmina escondida no bolso interno do paletó, cortando a jugular da infeliz.

Cezar tentou pensar sobre o que pode levar alguém a cometer tamanho desatino. A que ponto a loucura pode atingir uma pessoa considerada normal antes de praticar as arbitrariedades que geralmente acabam em desgraça? Ou os mais fracos não suportam atravessar os limites dum sofrimento? Provavelmente o homem não teria sequer pensado nas graves consequências, no fatídico destino aguardando os próprios filhos, pois, a partir daquele assassinato, já não poderiam contar com o pai como seu provedor, educador e amigo, não mais presente em suas vidas.

Os ecos, agora, cada vez mais intensos e angustiantes, soavam dentro da cabeça de Cezar. Al-guém-tem-de-fa-zer-al-gu-ma-coi-sa!

Quem poderá fazer alguma coisa, ele se perguntava. E que coisa será essa?

Andava cada vez mais inquieto. Aquilo não era uma impaciência normal, como quando se diz: tudo bem, vamos deixar de lado que logo passa. Não era assim dessa vez. Não, senhor. Agora ele ia se tornando vítima de algo sinistro, pesado, estressante, como se perseguido e importunado por uma ordem, uma exigência vinda de profundezas estranhas e desconhecidas, como um grito partindo dele mesmo e ao mesmo tempo não sendo algo pessoal, particular, mas de todo um vozerio, em uníssono, duma cidadela obscura, não vista nem conhecida por ele, posta de pé nem sei por que entidades ou seres desconhecidos.

Aquilo parecia uma tremenda imposição engendrando inquietações que então iam se pondo a influir no seu dia a dia, nos seus atos triviais, corriqueiros, como se houvesse grudado nele e não se descolasse jamais, até que fosse cumprida. Precisamente cumprida. Rigorosamente cumprida. Para o que desse e viesse. Uma ordem cujo cumprimento fosse inadiável. Lá no fundo ele já ia desconfiando do que se tratava, embora não quisesse ainda levar a coisa em consideração, analisar os seus detalhes, os pormenores, não se dobrando a ela e se recusando a pensar abertamente sobre.

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Uma lágrima solitária rolou na sua face direita, se perdendo e sumindo no trajeto. Era uma só lágrima, não mais que uma, enfim, um impulso que não deveria se transformar num choro convulsivo, ao contrário, logo estancado. Um sentimentalismo exagerado que, após um exame de consciência mais detalhado e profundo, poderia descobrir não haver motivo de ser, ao buscar no que havia se transmutado, nem sabendo se era mesmo uma transformação ou a parte mais visível do seu ser que teria de cumprir um destino, simplesmente, sem saber ao certo do que se tratava, mas sem dúvida algo para o qual tinha nascido. Toda a sua vida, então, todas as suas pretensões, anseios e vontades poderiam estar resumidos ali, agora, no cumprimento daquele destino.

Se tinha nascido unicamente para aquilo, então não era uma transformação. Não estaria sofrendo uma metamorfose.

De repente tudo se aclarou; as palavras pareceram jorrar em sua mente duma só vez, sem impedimentos ou falsidade. Admitiu que o que teria de fazer era algo grandioso, talvez não sob o ponto de vista de algumas pessoas, mas certamente algo que mudaria o destino de todo o país. Então compreendeu que tinha nascido para libertar o povo do momento mais triste e grave de toda a sua existência, eliminando uma força sinistra, opressora e altamente prejudicial à nação. Enfim, para deter um assassino que não media esforços no planejamento dos interesses próprios em detrimento da população.

Por isso havia derramado aquela lágrima… pela morte dum outro que habitara nele por muito tempo sem saber que não era o ser principal da sua vida, de sua razão de existir, que estava cedendo lugar ao verdadeiro agora. A um valente e corajoso cavaleiro vingador.

Já não havia ali o Cezar Campali de antigamente, de outros tempos, com outras vontades e desejos. Deixara de existir o tio de João Paulo e de Maria Elisa, o irmão de Arlete, o cunhado de George, o namorado de Maria D’Eu. O antigo filho de seo Antonio Campali e de dona Joana Aparecida deixara, afinal de existir; o garoto vibrante e pacato correndo com os companheiros atrás duma bola na infância não havia mais, aquele colega solicito e prestativo do pessoal do escritório acabara de morrer… Todos aqueles já não existiam, dando lugar a um único, verdadeiro e autêntico lutador, o libertador dum povo… ou, como alguns iriam denominá-lo mais tarde, depois de tudo consumado – o terrorista!

Admitiu que seria considerado como a um terrorista pelos lambe-botas do atual sistema político, dos puxa-sacos desses governantes que insistem na mentira e na desproporção entre realidade e fantasias e devaneios hipócritas, mas entendendo igualmente que muita gente iria aplaudir o seu ato extremo, solitário e corajoso, eivado de boas intenções, apego à verdade e ao bem-estar geral da população.

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Analisou friamente sua intenção, procurando uma certeza absoluta de que seria aquilo mesmo o correto a fazer. Perguntou a si mesmo se havia alguma possibilidade de voltar atrás naquela ideia e deduziu que não, enfim, tudo irrevogavelmente decidido, para o bem e para o mal, concluindo que o começo de tudo, o ponto de partida para sua revolta incontornável, inadiável e promissora para o país, havia sido a recusa, da parte do governo, em adquirir cem milhões de doses de vacinas contra o coronavírus. Aquilo era o que muita gente, incluindo ele, seria incapaz de engolir.

E o cheiro da morte voltou a penetrar com violência as suas narinas, mas, desta vez, um cheiro nem tão poluído devido às manifestas intenções permeando a futura execução daquele ato, o fazendo se sentir por instantes um verdadeiro demônio… cheio de boas intenções, é claro, afirmou a si mesmo. Um demônio para acabar com outro demônio. Uma luta entre diabos.

Então já não existia o cara que adorava levar pizzas e sorvete para os sobrinhos e vinho chileno para a irmã. Todas aquelas coisas, aquela convivência familiar e agradável que aquecia seu peito trazendo conforto interior e uma gostosa euforia, tinham ficado para trás, fenômenos sentimentais substituídos por uma vontade fria, uma determinação firme, trabalhada e pensada com uma dedicação especial e absoluta, fazendo disso um alto objetivo a ser cumprido. Para isso deixou de existir o Cezar Campali cumpridor dos seus deveres, de aprazível convivência familiar com parentes e amigos.

Transformado ou mesmo nascido para cumprir uma missão, friamente, sem se deixar levar por sentimentos baratos àquela altura, outrora responsáveis por sua satisfação e interesses ingênuos, não se importava mais com o que pudessem pensar dele. Porque uma boa parte do que tinha feito antes, da forma como vivera, como ajudar as pessoas ou fazer compras com os sobrinhos etc, já parecia algo menor, pequeno, até leviano mesmo, diante da grandeza daquela missão a cumprir, da envergadura e importância do que, dali a alguns dias, viria a ser, ou se transformar, no maior ou mais importante ato de toda a sua vida, de sua humilde e insignificante vida até agora. Depois disso, ela poderia até acabar (e provavelmente seria assim), porque nada mais teria importância.

Uma leve dúvida ainda persistia, perturbando-o ligeiramente, sobre alguns traços e aspectos do seu caráter, ou sobre as circunstancias levando-o a agir. A atitude em relação ao que teria de ser feito era um traço inerente a sua personalidade ou algo criado por força da necessidade de reação? Não importava. E de repente, sem que ele pedisse ou se esforçasse nesse sentido, surgiu uma outra questão, essa de fundo filosófico. Seria lícito tirar a vida de alguém responsável pela morte de milhares de inocentes? Mas em seguida resolveu que não queria saber se seria ou não lícito acabar com alguém responsável pela morte de tanta gente inocente, porque suas convicções estavam já formadas. Sim, seria lícito.

Então se colocou diante dum espelho e viu a si mesmo como nunca antes tinha visto. O libertador. E por quê não um herói? Sim. Porque muita gente gostaria de fazer o que ele ia fazer, o que se dispunha a fazer. Libertar o povo. Da ignorância, da passividade e do medo.

Ele gostou do que viu ali. Seu outro eu. Um eu mais robusto, respeitável e altamente consciente da sua missão. Um eu bem diferente daquele que jazia morto embaixo duma pele asquerosa e quase pútrida já. Agora surgia uma nova pele, um tecido de coragem, viçoso e valente. E também um sábio, por quê não? Afinal, ia livrar o povo de sua pior, mais cruel e sórdida representação das últimas décadas.

23

Ele sabia que não poderia partilhar seus planos particulares, suas ideias mais avançadas, com Maria D’Eu. Afinal, por mais revoltada que ela estivesse com a forma de enfrentamento à pandemia, era radicalmente contra a violência.

Beijou Maria D’Eu e disse que ia até o mercado comprar cerveja. Então encheu o tanque do carro e arrancou na direção da capital.

- Agora é entre nós dois, verme desgraçado! - gritou, agitando o punho além da janela do carro, enquanto o cheiro da morte ia penetrando todas as narinas, pensamentos e intenções, com seus ruídos funestos rondando ouvidos e cabeças, numa dança macabra de todos os terrores.

Carlo Manesco
Enviado por Carlo Manesco em 12/07/2021
Reeditado em 16/08/2023
Código do texto: T7298011
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