Massacre sob o Bolero de Ravel

Massacre sob o Bolero de Ravel

Carlo Cezar Manesco

1

Eles, os jovens, apesar do conforto disponível em todas as escalas e níveis, continuam querendo algo mais, uma transformação total, digamos, o mais rápido possível, de todo o mundo. Mas essa ansiedade, o desejo de uma mudança radical, não é coisa de agora; esse desejo voluptuoso de transformação se tem mostrado mais poderoso, sobretudo nos últimos séculos, e especialmente reivindicativo nas últimas décadas.

Acredito que Guerra Torres queria uma modificação completa do mundo em que vivia. Apenas que, como toda a gente, também ele ia quebrar a cara. A transformação radical da sociedade, de um momento para outro (numa escala universal), é algo improvável, inacessível ao ser humano.

Guerra Torres apreciava a literatura, chegando mesmo a conhecer os trabalhos de alguns autores famosos. Ele se pôs a ler Crime e Castigo, de Dostoiévski, e se encantou com aquelas ideias. No fundo, umas ideias um pouco estranhas. Em todo caso, alguns desses escritores são mesmo excêntricos.

Então Guerra Torres começou a se perguntar “por que os homens considerados grandes podem delegar a si mesmos” (um tema admirado pelo personagem central de Crime e Castigo), “por que esses homens podem delegar a si mesmos os maiores poderes sobre o mundo”, ou obtém a permissão da sociedade, “para perpetrarem aquilo que seria considerado um massacre se cometido por pessoas inferiores, fracas, desprovidas de intenções de longo prazo para justificarem suas atrocidades”.

Guerra Torres começou a estudar os crimes perpetrados por Raskolnikov, um personagem levado a assassinar duas mulheres, acreditando que agia assim em nome de um plano maior, uma ação mais nobre etc, além de premido pela necessidade. E foi aí, nesse ponto, que Guerra Torres se tornou um crítico feroz da sociedade.

Se é possível cometer crimes em nome de algo maior e não ser condenado (na visão de Raskolnikov antes de cometer os assassinatos), então é errado e falso o modo como pensa e julga nossa sociedade sobre a maioria dos crimes individuais. Sendo assim, nós próprios podemos ser acusação, defesa e juiz a um só tempo, por mais escabrosos que venham a ser nossos atos criminosos.

Como podemos ver, eram tais ideias que dominavam Guerra Torres.

Mas, aos poucos, ele foi se achando na posse de um direito que a maioria não tem: decidir como e por quê é ou não culpado esse ou aquele que pratica delitos. Jesus. E decidiu que carecia “expandir o conhecimento e formar as próprias ideias e leis sem depender de nenhum otário metido a besta querendo ensinar isso ou aquilo”. Ou seja, ia assumindo aquela posição de “eu me basto a mim mesmo”, sem ter de dar explicações a ninguém. E passou a considerar muito frágeis algumas posições sociais que reputava como extremamente sólidas até então... como por exemplo o julgamento inexorável que leva um criminoso a se enterrar por muitos anos num presídio; trabalhar oito horas diárias para não morrer de fome; se submeter às leis sociais nem sempre favoráveis aos mais pobres etc.

Em sua nova percepção, as coisas iam mudando aos poucos. Tudo era relativo.

O feriado, por exemplo, ou um fim de semana, não seriam mais do que um cala-boca para os assalariados fecharem o bico, engolirem a revolta, não se tornarem tão rebeldes, enlouquecidos, enfim, não saírem por aí quebrando tudo e destruindo as cidades.

Para ele, a infinidade de apartamentos e conjuntos habitacionais tinham se transformado em uma nova e exuberante senzala - um mundo em que as empresas e as grandes corporações substituem os cafezais e as antigas plantações de cana.

Certas ideias pareciam grudar naquele cérebro de uma maneira estonteante, diabólica - como por exemplo acreditar que o sistema atual se esforça no sentido de manter um regime de escravidão para assalariados.

Sempre aquela história de apontar grandes empresas como substitutas dos canaviais, uns arremedos de liberdade para disfarçar, como fim de semana, feriados, clubinho social no feitio de um cala-boca e pronto, todos contentinhos e animados. Ele vivia repetindo uma frase.

- O ferro em brasa da atualidade não deixa marca física mas queima a consciência.

Podemos dizer que ele não era um sujeito normal. Ali ninguém fincaria outras ideias; ninguém jamais faria ele se comportar como um homem da multidão, um zé-ninguém, por exemplo, um homem trabalhador que buscasse um lugarzinho na comunidade e pudesse ter sua família e filhos e essa coisa toda, não, senhor. Guerra Torres não era um sujeito em quem a comunidade pode confiar.

Ele não era um bandido comum... Nossa, acho que falei bobagem agora. Não sei se ele poderia ser enquadrado como bandido. Era um ser humano incomum, complexo, arredio, arisco, como se estivesse se esforçando sempre para fugir de uma observação mais atenta, um olhar mais curioso e tal, sobretudo num lugar repleto de turistas estrangeiros, que mais parece uma cidade ou um balneário se transformando em novos amontoados de pessoas a cada temporada.

A maresia produz efeitos diversos nas pessoas num balneário. O som das ondas quebrando na praia é uma trilha sonora diferente daquela no interior, nos campos, ou mesmo em cidades pequenas. Parece haver uma liberdade maior ali, ao lado do mar, devido talvez à grandiosidade e influência da natureza.

Guerra Torres vagabundeava a pé nas noites ao som das ondas, sob os efeitos do forte cheiro do mar e dum vento calmo. A lua gigantesca e amarela no céu. Também ele se sentia um gigante. Meu Deus. De alguma maneira ele se achava, acreditava mesmo ser um gigante com suas próprias leis e regras, poderoso naquela majestade digna de uma grandeza adquirida na compreensão de um estado de graça natural, proveniente talvez de aspectos hereditários ou mesmo devido a um forte sentimento de autodeterminação e amor-próprio, transmitidos na infância por pais conscientes e preocupados com o desenvolvimento e o futuro dos filhos. Não custa dizer que a mãe dele é professora universitária e o pai um respeitado e influente delegado da polícia federal.

Então, durante os dias, passou a observar os turistas. E a cada momento eu via sua curiosidade crescer. Ele fazia muitas perguntas sobre os turistas, principalmente a respeito de horários, quando iam à praia, quanto tempo ficavam ao sol, a que grupo pertencia essa ou aquela nacionalidade... “que bando alegre, extrovertido... de qual país?” Queria saber tudo, detalhadamente, onde preferiam se divertir, que tipo de diversão, a que horas. Se eu facilitasse, iria me perguntar a cor da calcinha das mulheres. Brinquei:

- A curiosidade matou um gato.

- E um gato matou dez ratos - ele fuzilou na hora com olhos faiscantes.

Foi o suficiente. Parei de bancar o atrevido. Fiz isso, primeiro, por curiosidade e, depois, ele não estava brincando - falava sério.

Algo foi se tornando claro com o passar dos dias. Guerra Torres estava sondando

os turistas, seus costumes, horários etc, como se fosse surpreendê-los de algum modo. Mas nunca me passou pela cabeça, até o último instante, o que verdadeiramente ele pretendia - talvez porque se mostrasse discreto e agia com esperteza, procurando encobrir ou disfarçar o excesso de interesse. Uma de suas manhas era mudar rapidamente de assunto para quebrar o suspense, ao perceber que eu fixava a atenção em determinada pergunta sua sobre os turistas, “os estrangeiros”.

Nunca o considerei como a um qualquer. Havia algo naquela figura que insinuava estranheza... e respeito; ele parecia ocultar alguma coisa além do interesse por objetivos banais. Tudo nele parecia indicar um conjunto de forças reunidas com um só propósito - alguma coisa grande.

Despertava bastante as atenções aquele sinal arrogante, inconfundível, na sua risadinha aparentemente simples... e no entanto de alguém que deseja se mostrar superior. Era assim: ao mesmo tempo que Guerra Torres parecia um simplório, um típico interiorano, às vezes causava confusão, de um instante para outro, adquirindo um ar severo e complexo, de quem mergulha em profundas reflexões e não se deixa perturbar por nada mais.

Ou de repente se transformava num carrasco, como alguém buscando, a todo custo, revelar seu desprezo por tudo e por todos antes de ser desprezado. Um salto à frente. Ele estava sempre se antecipando a qualquer demonstração de hostilidade que pudesse haver em volta. E assim conseguia intimidar a maioria. Às vezes ele me acompanhava por algum tempo, ao longo da avenida à beira-mar, até entrarmos por três ou quatro quadras em direção as ruas e casas mais distantes da praia.

2

Um dia, um moleque nos abordou pedindo dinheiro.

Notei que Guerra Torres se sentia incomodado diante da pobreza, da miséria absoluta, sobretudo em se tratando de crianças pedintes, maltrapilhas. Falava sobre isso ao observar os turistas alegres, festivos, nas mesas de lanchonetes e restaurantes ao longo das ruas e avenidas.

Ele falava também sobre os gastos excessivos dos turistas em contraste com o sofrimento da população mais pobre do lugar. E se mostrava especialmente revoltado neste ponto: o exagero daqueles gastos. E se punha a xingar os caras.

Às vezes eu via ali um ódio exacerbado, algo além do normal; não era uma simples revolta com as coisinhas que diariamente fogem ao nosso controle. Ele não queria externar só uma opinião sobre as diferenças de classe. Mas percebia meu interesse crescente, ele mesmo surpreso com aquela desesperada demonstração de ódio, mudando imediatamente o rumo da conversa.

- Uma lei proibindo ter filhos.

Guerra Torres era um cara muito esperto. Ao notar que me deixava intrigado seu interesse e a revolta exagerada com os turistas dos países ricos, ele mudava o foco da conversa, centrando fogo sobre a indiferença dos ricos para com os pobres. Então pretendia, supostamente, expressar apoio às leis que impedissem um pai pobre, sem recursos, de gerar filhos.

- Só pra quem ganha bem e tem curso superior.

Às vezes ele parecia mesmo acreditar naquela ideia maluca. E me seguia explicando que o mundo seria melhor se fosse menor a quantidade de pobres e sofredores. De acordo com seu ponto de vista, crianças indigentes e sem instrução contribuem para o aumento do número de traficantes, assassinos, estupradores e bandidos em geral. Mas aí ele chegava a um impasse.

- Quem continuará se escravizando? - perguntava - Quem irá lavar, passar e limpar pras madames?

Aí ele mesmo chegava à conclusão de que seria difícil aprovar tal lei.

Às nossas costas, enquanto a gente caminhava, ia se tornando abafado o som das ondas na praia. Às vezes um luar forte lançava brilhos amarelos sobre as montanhas escuras em volta do balneário.

E... bem, havia uma nota sinistra no ar, acho que posso mesmo dizer: uma coisa macabra, aquela atmosfera lúgubre, fatídica se espalhando surdamente sobre tudo. Senti, através dum arrepio, algo muito ruim, terrível, para breve, nos próximos dias, como se o próprio diabo estivesse ali, do meu lado, maquinando... Nossa senhora.

Eu estava inquieto, dominado por um começo de falta de ar.

Não sei em que espécie de hipnotismo ou feitiçaria Guerra Torres me havia envolvido... não sei... um absurdo... mas em muitos momentos fui incapaz de ligar meus pressentimentos desagradáveis à presença dele. O que podemos dizer a essa altura é o seguinte. Existem acontecimentos bons e ruins que influenciam a todos nós.

Mas será verdade que todo tipo de mau comportamento pode se originar de um conflito interior irremediável, invencível?

Um dia, um pouco antes de a gente se conhecer, Guerra Torres deparou com a notícia na tevê. Invadiam os noticiários de todas as tevês, rádios, internet etc, as informações sobre a invasão de um país árabe pelos ocidentais. Aquilo causou um tremendo alvoroço entre todos, ainda recordo muito bem: a ansiedade, as exclamações aflitivas, perguntas e opiniões de todo tipo entre as pessoas. Mas tocou, especialmente, o coração e a mente de Guerra Torres.

Ele ouviu o apresentador do noticiário dizer que um país havia sido invadido por exércitos de países ocidentais; a suposta intenção seria de implantar o sistema democrático na terra invadida para livrar o povo de uma “ditadura sanguinária”.

Agora estamos entrando em outro terreno, e não sabemos aonde iremos parar. Aonde iremos parar com essa possibilidade de um país ser invadido a qualquer momento, se perguntava Guerra Torres.

O garoto me disse que sentiu um grande mal-estar ao ouvir aquelas palavras, tremendamente angustiado ao presenciar, pela primeira vez, aquele tipo de notícia, isto é, sobre invasões de países. Nada igual havia passado por sua cabeça até aquele instante, sim, senhor, jamais poderia imaginar que é possível ir invadindo assim, sem mais nem menos, apenas “pra levar democracia ou procurar armas de destruição em massa”.

Algum tempo depois ele viria a descobrir que aquela conversa de procurar armas de destruição em massa e de levar a democracia a outros povos não passava de um erro. Mas, antes de fazer a tal descoberta, ele mesmo havia chegado, por conta própria, segundo me disse, à conclusão de que não passava de “enganação e papo furado” a possibilidade de ajudar esse ou aquele país a se livrar de regimes totalitários.

- Não cola mais essa coisa de invadir uns e outros, tentando encobrir interesses estratégicos e econômicos com discurso sobre direitos humanos.

Aí chegamos ao ponto essencial. Podemos ver que Guerra Torres não era nenhum bobo alegre que vai concordando com o que houve, mas sobre isso já falamos - ninguém podia ter algum controle sobre a mente dele. E se viu tremendamente revoltado ao ouvir as notícias sobre a invasão.

Naquela noite, ao se deitar, algo foi tomando sua cabeça, invadindo seu espírito, como se ele mesmo se tornasse vítima de certas invasões, de certas guerras, da brutalidade que cercam essas guerras.

E aconteceu. Com o correr do tempo e a novidade da invasão e das batalhas se dando diariamente, transmitidas às vezes em tempo real pela tevê, inclusive com notas detalhadas sobre as mortes e a brutalidade em geral, o negócio cresceu e se avolumou, tomando conta, definitivamente, de Guerra Torres. Ele se posicionou contra, era contra as invasões e as guerras. Assumiu sua posição e fincou pé. Aquilo estava errado, muito errado.

- Não é possível ir invadindo assim o país dos outros!

Nas discussões que passaram a acontecer entre as pessoas, entre roda de amigos, nos bares e lanchonetes, nos colégios e universidades, era ele o único a defender o país que havia sido invadido pelos ocidentais.

Após um grande alvoroço, com a invasão noticiada por todas as mídias, o povão, acostumado à violência dos dias atuais, já não dava muita importância ao fato. Com Guerra Torres, porém, se deu o contrário. Algum tempo depois, a revolta e a perturbação inicial se transformaram em efervescência interior, fazendo subir a temperatura e resultando em maior agitação enquanto ele remoía o assunto.

O garoto ia se inflamando cada vez mais com todo aquele negócio.

Então eu pude notar que ele nutria um desprezo especial pelos turistas estrangeiros. Aliás, a maioria daqueles turistas era dos países ocidentais que tinham invadido a nação árabe.

Guerra Torres me perguntou o que o invasor faz com as crianças e as mulheres dos países dominados. Não tive tempo de responder. Ele mesmo o fez. - Geralmente estupram e matam!

Evidentemente havia uma carga de ódio e irracionalidade naquela resposta, afinal, invasores nem sempre são tão carrascos como ele imaginava, não, senhor. Aliás, discordei com sinceridade. Não acredito que, ao ocupar um país, os soldados vão entrando e destruindo o que encontram pela frente, sobretudo porque há um código de conduta e a disciplina da tropa. Aquilo não é um bando de animais sedentos por sangue aonde quer que cheguem. Os tenentes, capitães, comandantes, enfim, existem para isso, disciplinar e orientar seus comandados no sentido de cumprir a missão com alguma civilidade, pelo menos... é o que se espera... ainda que não seja possível falar em civilidade em se tratando de invasões e guerras.

3

A verdade era que eu ia tentando colocar panos quentes em toda aquela fúria de Guerra Torres. O negócio não fazia bem ao garoto, ao contrário, cheguei mesmo a acreditar que em determinados momentos ele pudesse babar feito cachorro louco ou enlouquecer, de tanto ódio . Eu fazia o que podia, o que estava ao meu alcance.

- De repente há boas intenções ao se tomar um país.

Jesus... por que fui dizer aquilo?

Imediatamente vi os olhos de Guerra Torres cintilando de maneira diabólica, como se ele, naquele instante, perdendo completamente a racionalidade, fosse pular em cima de mim, me estraçalhar, me transformar em tiras ensanguentadas, como se eu fosse o invasor. Fazer o quê? Mantive silêncio diante de reação tão virulenta. Compreendi que a invasão havia mexido com ele de um modo profundo e irreversível.

Nesse compasso, ele ia cultivando uma raiva, um ódio cada vez maior ao invasor, aos invasores de qualquer país, podemos dizer.

Invasores. De países. Haviam começado outra guerra estúpida. Uma brutal invasão. Guerra Torres rangia os dentes de raiva. Ele queria estar lá, expulsar o invasor, defender o povo, salvar todos. E na sequência eu ia tentando mostrar a realidade a ele.

- Mas o que você pode fazer? Esqueça.

- Não consigo nem quero esquecer! Não tolero invasores!

Coisa estranha. Eu não era capaz de entender por quê um cara, aqui, no outro lado do mundo, se preocupava tanto assim com a tal invasão. Ele se negava terminantemente a enxergar sua impotência diante do caso, isto é, da guerra, ou melhor, diante da impossibilidade de ajudar, de algum modo, aquele povo sofrido.

Sim, senhor, os invasores haviam começado outra guerra, deixando o garoto louco de raiva, rangendo os dentes, se mordendo, cheio ódio e revolta. Ele queria estar lá, expulsar o invasor. Então se via num campo de batalha matando o maior número possível deles. Com muita crueldade. Queria infligir castigos terríveis a eles, cortando seus braços, pernas, arrancando cabeças, encharcando a roupa de algum agonizante e pondo fogo.

Devo dizer que todo aquele negócio trazia imensa vibração a Guerra Torres; ele se via animado, defendendo as vítimas, atacando, destroçando o inimigo. Fazia gestos como se estivesse esmigalhando alguém sob o calçado, em seguida incendiando o pobre coitado. Parecia mesmo estar dando um gole de prazer e despejando o resto da garrafa em cima do infeliz espremido sob sua bota e se afastava, rindo feito um diabo iluminado pelas chamas da vítima. Esta era a cena que nós imaginávamos devido ao perverso detalhamento de Guerra Torres e sua convicção ao se deliciar com a possibilidade de uma vingança.

Eu ia conhecendo um cara cada vez mais revoltado. De repente ali estava aquele tema formidável e assustador, das invasões - defendidas por uns e recriminadas por outros. Um tema coincidindo com os jogos fantasiosos e violentos na internet, assumindo ares incrivelmente reais, sobretudo se a tevê traz diariamente, e às vezes ao vivo, as atrocidades cometidas no calor das batalhas.

Guerra Torres era um crítico perspicaz das invasões, acompanhando as notícias sobre política nacional e internacional. Para ele, já não havia salvação: ladrões se disfarçam de políticos e roubam; administradores usam causas públicas para locupletarem a si mesmos e suas famílias e protegidos em geral; chefes de Estado nem se preocupam se matam inocentes aos montes. Então que papo-furado é esse de paz e harmonia? Tudo não passa de conversa mole, um embuste para enganar os trouxas, ora. Que continuassem mentindo aos obtusos, porque a ele não enganariam mais, não, senhor! Aliás, quer saber? Que se foda!

Nesse pé estavam as coisas. Ele era um jovem voluntarioso; não ouvia os outros e criava suas próprias leis. Como eu já disse, um cara que se bastava a si mesmo. Seguia por aí como se pisasse em território de ninguém, numa zona neutra em que tudo fosse permitido. A verdade era que ele estava enlouquecendo. Talvez não faltasse muito para perder completamente o juízo.

E foi assim, nessa situação, que ele conheceu Lucila, quando ela saía da biblioteca pública no movimentado calçadão, com muitas pessoas indo e vindo sob o sol morno da tarde num verão de temperaturas altas.

Lucila era funcionária da biblioteca. Uma garota com bastante graça e leveza, atributos característicos daquela feminilidade profunda que se encontra em mulheres sensuais e conscientes do seu poder de sedução.

Houve um flerte inicial entre os dois, que evoluiu para o começo de uma boa amizade nos dias seguintes; depois, para conversas íntimas entre os lençóis de um motel. Duas semanas após estavam morando juntos. No apartamento dela.

Em vários dias da semana ele acompanhava Lucila até a biblioteca; enquanto ela trabalhava ele ia lendo, todos os jornais do dia, principalmente aqueles que traziam notícias sobre invasões e guerras. E foi se interessando por notícias interligadas sobre crimes internacionais, economia, conflitos armados, geopolítica etc.

Mas sentia um mal-estar generalizado ao ler sobre “ocupações militares”, “países ocidentais”, “coalizão”, “tropas”. Aliás, é bom ir dizendo que ele jamais se referiu às invasões como a “ocupações”; gostava de destacar sobretudo a violência embutida no termo “invasão”, sem condescendência, não abrindo mão de apontar a brutalidade da posição unilateral de um invasor, qualquer que fosse ele, frente ao povo violado.

Para Guerra Torres, o invasor, de qualquer nacionalidade, envolvido por qualquer plano ou intenção de domínio, não passava de um reles bandido.

Caramba, vi o rapaz ficar vermelho, se encher de ódio, um ódio brutal, enraizado, quase espumando de raiva e revolta, diante de notícias que, para a maioria, nada queriam dizer, ou nada significavam num cotidiano repleto dos problemas comezinhos da gente simples que labuta diariamente. Como fui me afeiçoando a ele, como a um filho que nunca tive, fiquei preocupado com aquela birra contra os países ocidentais, embora eu soubesse que não era simplesmente uma birra, mas uma posição firme e irreversível, agora eu posso afirmar.

4

Lucila e Guerra Torres se davam bem. Eram da mesma idade, 25 anos. Saíam bastante e se divertiam... na medida do possível, afinal, acredito não ser fácil conviver com uma mente doentia como a daquele garoto. Reconheço que ele não era um cara normal, aliás, eu já disse isso.

Certa noite, Lucila estacionou o carro a dezenas de metros de uma boate, à meia-noite. Não havia outro lugar devido à fila de veículos ali. E não havia uma quantidade suficiente de luzes acesas nos postes da rua, de modo que uma escuridão sombria se espalhava sobre o local.

Ao saírem do carro, foram assaltados. Dois pivetes emergiram das trevas e renderam o casal. Guerra Torres preferiu não reagir frente às armas e entregou uns trocados aos pivetes.

Depois de um suspiro de alívio, se reuniram aos amigos de Lucila dentro da boate. Refizeram várias vezes, entre risos, o roteiro do assalto, com todos os detalhes (inclusive a exagerada palidez de Lucila na hora e a grosseria e brutalidade dos moleques), enquanto isso bebendo muita cerveja. Todo o grupo tratava com um certo deboche o assalto, já que o perigo havia ficado para trás e eles estavam a salvo dentro da boate. Alguém sugeriu irem até uma delegacia, mas Guerra Torres repetiu o que já havia dito a Lucila. - A polícia vai perdendo a parada pros bandidos, não adianta reclamar.

E todos continuaram comendo e bebendo a valer, enchendo a pança feito uns malucos entre um monte de copos e garrafas, em meio à claridade enfumaçada e ao forte cheiro de cigarro, gritaria, um rebu danado. Isso, até às três da madruga. Porque exatamente às três horas um desenfreado metido a besta se pôs a falar, em tom de discurso - um discurso barato, como diria depois Guerra Torres - pronunciando o que parecia um ato de apoio a um tal “novo colonialismo”.

Evidente que o gajo estava bêbado e se referia às recentes invasões estampadas nas manchetes dos jornais e, no ambiente iluminado cheio da fumaça dos cigarros, se pôs a despejar suas ideias sobre a turma, agitando mãos e braços num fervor supostamente revolucionário.

Houve silêncio por um instante. Ninguém queria ouvir falar em guerra àquela altura. Todos embriagados. Alguém mandou o engraçadinho, junto com o seu discurso de última hora, tomar no cu. Lucila olhou apreensiva para o namorado, se mantendo em expectativa, afinal, sabia que aquele tipo de coisa o deixava irritado. Já haviam conversado bastante a respeito. Sobre invasões, quero dizer. E aconteceu algo engraçado. Guerra Torres se levantou da cadeira, um tanto cambaleante, e tentou dar um passo.

- Preciso ir…

Mas não foi. Não pôde continuar. Se curvou ali mesmo, já sem tempo de ir ao banheiro, pondo tudo para fora diante dos olhares de repulsa e desaprovação dos circunstantes.

Ele ainda se debatia com pedacinhos de alimento na garganta quando se recostou à cadeira, esbodegado devido ao esforço do vômito.

Lucila, perplexa, sem saber como reagir àquilo, ia pensando que os dois haviam saído de um assalto e Guerra Torres não tinha demonstrado nenhuma impressão mais profunda além da revolta habitual. Mas bastou alguém falar sobre invasões e pronto - estava feito. Ela intuiu que as palavras sobre invasões eram a causa daquele vômito. Ali se debatia o rapaz diante de um incrível e repentino mal-estar ao ouvir aquilo.

É verdade que ele havia bebido bastante e realmente não estava muito bem, mas também é verdade que não estava tão mal a ponto de vomitar... exceto ao ouvir alguém fazendo um discurso... defendendo os invasores!

Talvez tenha sido um protesto em reação direta ao discurso do outro, quem sabe. Em todo caso, ele me garantiu que o vômito tinha sido involuntário. Ok, vamos lá, alguns podem ser mais sensíveis que outros em determinadas situações, às vezes algumas palavras ou atos atingem de maneira mais direta esse ou aquele, a você ou a mim etc... Cada um sabe de seus melindres.

E não é que, pouco depois, ele se levantou de novo, ainda cambaleando, para tirar satisfações com o carinha que havia pronunciado o tal discurso? Meu Deus. Choveu pancada para todos os lados. Mas um bando de embriagados não possui, vamos dizer, uma grande capacidade de estrago ou mesmo o objetivo de atingir alguém seriamente, de machucar alguém, desde que seja um bando de jovens que, a princípio, apenas se diverte numa boate, sem nenhuma intenção de matar ou se vingar. Muitos também entraram de graça naquele quebra-pau.

A maioria fugiu antes que a polícia viesse.

É natural que algumas obsessões possam vir a nos dominar. Existem mesmo as que não se desgrudam. E Guerra Torres enfiou na cabeça que precisava de uma arma, sim, senhor. Não houve santo que o fizesse mudar de ideia. Não havia um propósito, um alvo definido, mas se viu tomado pela necessidade imperiosa de obter uma arma.

Havia, sim, um motivo. Era para se defender em caso de outro assalto. E isso, considerou, parecia um ato de inteligência. Adquirir uma arma. Com a horrível onda de violência crescendo à toa, nada melhor a fazer do que se armar.

Não foi difícil. Drogas e armas estão à disposição aos montes hoje em dia. Ele foi a uma daqueles bocas onde é possível encontrar tudo - que é ilícito. E viu o bicho. Lá estava a .40 esperando por alguém. A destruidora de vidas. A causadora de tragédias.

Era a primeira compra de Guerra Torres, quero dizer, sob o ponto de vista de se sentir carinho por algo que se adquire. Ao ver a arma, ele se achou mais poderoso, mais forte, eletrizado. E me confessou que, no instante em que se apossou do revólver, teria sido capaz de matar até o Papa. Veja só que loucura.

Lucila emprestou algum a ele para a tal compra. Ele a convenceu de que seria bom ter uma arma no meio de tanta violência.

Havia ali uma tendência em querer se deslocar o tempo todo para um terreno fantasioso, além da realidade, um estado, podemos dizer, fictício, longe do dia a dia, desse dia a dia repleto de insignificâncias e monotonia que a maioria conhece e onde muitos se acomodam. Ele, não. De jeito nenhum. Repelia a normalidade e não sabia direito o que buscar... ainda. Mas não se satisfazia com os pequenos negócios de uma vida normal, aqueles que seduzem as cacholas menos atentas que, no fim das contas, se contentam com as ninharias.

Aconteceu que Guerra Torres acabou se apaixonando por armas. Que coisa, hein? Só faltava essa. Ele agora um colecionador de armas. Pelo menos foi isso que pensou ao adquirir a pistola. “O próximo passo será um rifle!” E evitava gastar com outras coisinhas para poder aumentar sua pequena coleção.

Lucila passou a se preocupar com os novos acontecimentos.

Guerra Torres também gostava de brincar com as armas, indo praticar em lugares desertos, fora do balneário - inclusive para adquirir familiaridade com elas. Queria saber manejar muito bem aquelas coisas; buscava uma intimidade total com armas e disparos. Treinava em alvos a três ou quatro metros de distância. Depois, foi aumentando a distância entre o ponto de disparo e os alvos. Dez metros. Quinze metros. E como via diariamente notícias sobre invasões, através da internet, na tevê e nos jornais, passou a imaginar que seus alvos eram os próprios invasores.

- Assassinos!

E atirava várias vezes. Bam! Bam! Bam!

-Terroristas!

Aliás, é curioso notar, foi ele o primeiro que então vi se referir aos invasores como terroristas... quero dizer, talvez tenha sido apenas ele e mais uns dois ou três usando esse termo para designar as tropas da coalizão. A maioria diz tropas da coalização... ou ainda exércitos ocidentais etc.

Depois, com o tempo, o garoto foi se tornando incapaz de se livrar daquele impulso mórbido de ligar a tevê, ler jornais ou procurar na internet informações aos montes sobre a invasão, ataques, número de mortos, enfim, tudo sobre as vítimas da guerra... que para ele, como eu disse, não era uma guerra, mas um ato unilateral imposto pelo invasor sob um povo praticamente indefeso, ao se levar em conta o poder de fogo da coalizão.

Ele pensava nas chacinas, na trucidação dos inocentes, inúmeras bombas destruindo vilas inteiras, cidades, privando os moradores de água e energia elétrica, e imaginava as criancinhas sendo queimadas, jovens estupradas, escolas e hospitais destruídos, mutilados morrendo à míngua. Intuía que, numa invasão, geralmente são incontroláveis as barbaridades e os excessos. E passou a se preocupar efetivamente com todo aquele negócio. A coisa se instalou em sua cachola de um modo assustador. Jesus. Sofria demais como se ele mesmo estivesse sob fogo inimigo e perdendo familiares e amigos, braços e pernas.

Julgou, enfim, encontrar um meio de não se ver tão oprimido; inventou um suposto número de mortos: cinco invasores, dois insurgentes. Insurgentes para as manchetes, porque, para ele, eram apenas nativos sendo trucidados pelos invasores.

Sentia prazer em calcular o número de mortos... que não correspondia à realidade. Por exemplo: dez invasores, três rebeldes... opa, quero dizer, três nativos. Mas ele sabia que a quantidade de nativos mortos era infinitamente maior. Então aumentava sem parar, descontroladamente, o número de invasores mortos, as baixas entre o inimigo.

Nem é preciso dizer que aquela coisa atingia de um modo profundo, anárquico, sua mente torturada. Os horrores inomináveis de uma guerra, ou de uma invasão, haviam chegado até ele através das cenas violentas da tevê, mesmo com pedaços de corpos sendo exibidos na internet, às vezes pelos invasores, numa atitude que Guerra Torres considerava altamente ofensiva a todo mundo.

5

Para acompanhar a invasão passo a passo, foi lendo diariamente os jornais na

biblioteca ou acessando a internet e assistindo tevê.

- Quem essa gente pensa que é pra ir invadindo assim?

Estava surpreso, admirado. Como? Em pleno século XXI!

-Assassinos!

Lucila ia se vendo assustada com o companheiro. Palavra, acho que ele já estava louco àquela altura. Fazia parar, de vez em quando, um grupo de turistas das nações ricas, no balneário (provavelmente pessoas que integravam a população dos países da tal coalizão), e à queima-roupa ia dizendo bobagens.

- De que país você é? E você aí? É a favor da invasão? Vocês são a favor da invasão?

Uns riam e se afastavam, achando engraçada a cena; outros pareciam preocupados. Dos olhos de Guerra Torres saltavam chispas diabólicas ao interpelar os turistas.

Ele se vestia com roupas de poucas cores, geralmente cinza claro, azul escuro e preto. Às vezes xingava os invasores em voz alta ao passar ao lado dos turistas.

De uma coisa eu não duvidada. Aquela não era uma revolta fingida; era um ódio que subia descontroladamente das entranhas dele, sobretudo depois que havia passado a acompanhar diariamente a invasão.

Às vezes descrevia carinhosamente Lucila, como se passasse de um pesadelo a um mundo cheio de paz e encantamento. Aquilo soava um tanto estranho. Mas a mudança não se estendia por muito tempo. Em poucos minutos ele parecia despertar de um sonho tranquilo para mergulhar novamente no pesadelo. Seus gestos, olhares e movimentos se transformavam, parecendo um selvagem com uma bomba à espera do inimigo.

Só ele falava a maior parte do tempo. Eu compreendia, ou fingia compreender, aceitando como plausíveis e verdadeiros alguns argumentos e discordando de outros. Normalmente ele ia subindo o tom da voz e se exaltando. Eu, como sempre, tentando controlar o negócio.

- Mais baixo. Vem gente aí.

- Grande coisa. Essa gente não vale nada, não presta.

Caramba, era impressionante seu desprezo pelos turistas estrangeiros. Mal ele sabia que justamente aquele tipo faz a festa e a alegria de muita gente. A maioria desses turistas procura se mostrar simpática e agradável. Mas me causava espanto o pouco-caso que Guerra Torres fazia deles. Certa vez cuspiu com tanta vontade, fazendo caretas de nojo ao cruzar com algumas pessoas, que por pouco não atingiu os infelizes. Outra vez, ao cruzarmos com um grupo de homossexuais de gestos um pouco exagerados, gritinhos e roupas extravagantes, ele estacou no meio da calçada, de braços cruzados, como uma autoridade implacável a exigir satisfações de um bando de criminosos.

- Vocês aí! São a favor da invasão?

Os caras riram, se desviaram e foram embora. Provavelmente estavam embriagados. O olhar que Guerra Torres lançou sobre eles ou, mais acertadamente, às costas deles e aos seus bamboleios, foi uma das coisas mais endemoninhadas que já vi. Tive até medo naquele instante... não exatamente dele, mas de algo que parecia se mover sinistramente em seu interior... para crescer e se agigantar de um modo definitivo, catastrófico.

Controlei o mal-estar e me esforcei para fazer alguma oposição, já que, no fundo, eu não concordava com tudo o que ele dizia.

- Espera aí. O que têm eles a ver com a invasão?

- Não é o dinheiro do imposto deles que financia os exércitos invasores? Não são eles que enviam os próprios filhos pra destruir países?

Estive a ponto de fazer uma piada naquele momento, mas me contive. Pelo menos em nossa época, os homossexuais ainda não têm filhos com idade de ir à guerra. Mas ele estava embriagado e misturou tudo, falando de homossexuais e se dirigindo por tabela aos heterossexuais, esses, com certeza, pais da maioria dos guerreiros que andam

invadindo países.

Facilmente eu entendia o que Guerra Torres queria dizer, mas era preciso tentar convencê-lo de que as relações internacionais e as guerras, ou as invasões, não são tão fáceis de se entender... pelo menos a nós, simples mortais, aqui embaixo, distantes dos gabinetes, dos conchavos e dos palácios presidenciais onde tudo é resolvido.

Tentei mostrar a ele que tais decisões são tomadas geralmente por políticos e líderes eleitos através do voto e, às vezes, ou até muitas vezes, esses líderes e políticos contam mentiras aos seus eleitores visando os interesses da nação e até mesmo da indústria bélica, que impulsiona sobremaneira o desenvolvimento de uma economia. Ou pode acontecer o contrário: endividar exageradamente o país.

Eu não tinha certeza do que estava dizendo, mas acreditava mais ou menos no que dizia. E, com atenção redobrada, procurava os olhos dele na expectativa de que podia convencê-lo a pensar com mais esperança sobre a humanidade.

Que nada. Ele nem dava pelota. E continuava seu discurso.

- Se os eleitores tivessem sido enganados, hoje estaríamos vendo protestos pelas ruas do país dos invasores. Você vê algum protesto? Só vejo eles dizerem que procuram armas de destruição em massa, que vão levar democracia até lá etc. Deixa de ser bobo. Você acredita em papai noel?

Havia, sim, tido algum protesto no começo daquela invasão. Mas eu não queria admitir que o tal ataque houvesse sido completamente inútil. As coisas, na verdade, não iam se cumprindo como haviam sido desenhadas no projeto inicial dos ocupantes. Eu não queria dar o braço a torcer, concordar que eles tinham entrado pelo cano, porque, à época, quando as notícias eram fortemente manipuladas e a verdade toda quase nunca aparecia, quase nunca chegava ao grande público, eu tinha bastante admiração por certos povos e países.

O problema maior, a meu ver, era uma tal simplificação a que Guerra Torres queria submeter o modo de agir das grandes potências. Lá em cima, onde nós, daqui de baixo, dificilmente podemos enxergar algo, isto é, nos palácios presidenciais e nos gabinetes onde se dão as combinações e são traçados os planos de ataque, o negócio pode não ser tão simples como às vezes imaginamos que seja. Mas ele não desistia de sua ingênua voracidade contra as “tropas de ocupação”.

- Inventaram tantas mentiras, dizendo que o país é um fora da lei, que vão prejudicar esse e aquele... mas basta a minha palavra de que o vizinho não presta e podemos ir lá e arrebentar com ele?

Foi naquela altura que ele passou a beber muito, deixando Lucila bastante preocupada.

Como eu já disse, Guerra Torres havia lido Crime e Castigo... e gostou. E falava com admiração sobre as ideias do personagem. Esse personagem havia matado uma agiota e sua irmã para se apoderar da pequena fortuna delas e tentar se lançar a uma grande causa em favor da humanidade.

Alguns amigos indicaram outros livros a ele.

- De autores que discorrem sobre as injustiças e a sordidez de governos invasores e terrorismo de Estado. Esses meus amigos são muito inteligentes. Eles falam desses invasores de um jeito que muito me agrada. Dizem que eles são os Novos Bárbaros!

Não sei como, Lucila, uma bibliotecária refinada, inteligente e bonita, foi se interessar por Guerra Torres, um tipo mais ou menos grosseiro. É verdade que ele ia apreciando verdadeiramente as leituras que fazia, podia discutir ou debater sobre coisas interessantes, assuntos que atraem as atenções, formular ideias com algum fundamento, mas geralmente deixava a desejar a um interlocutor mais atencioso ou interrogativo, como a definição correta de suas ideias ou argumentos (às vezes ele confundia tudo e não dizia coisa com coisa).

Era intrigante, sob esse aspecto, o fato de uma garota sensível e perspicaz como Lucila haver se interessado por ele. Uma garota sempre bem vestida, elegante, charmosa, chamando as atenções dos homens, e também das mulheres, por onde passava. O quê ela havia visto nele, um esquisitão alto, magro, parecendo até um pouco desengonçado no modo de andar, se vestindo eternamente com roupas humildes naqueles tons invariáveis, azul escuro, cinza e preto?

Mas não devemos nos debruçar sobre certos tipos de particularidades que há num relacionamento: as atrações que movem os amantes. Certamente ela viu naquele rapaz alguma delicadeza e sensibilidade, algo que, por enquanto, não enxergamos. Ela teria distinguido ali coisas que só a mulher apaixonada é capaz de sentir. Teria visto um homem interessante, ao contrário do sujeito encrenqueiro e desequilibrado vislumbrado por outros.

Então ele falava com raiva sobre o que ia aprendendo. Contava como os “novos bárbaros” haviam prejudicado outros povos. Esses novos bárbaros teriam “apoiado golpes de Estado, financiado ditaduras sangrentas, assassinatos, sequestros, estrangulando economias de governos eleitos democraticamente.” Agiam daquela maneira unicamente para defender interesses econômicos e financeiros, em busca de um lucro cada vez maior, sempre ocultando suas intenções com argumentação sobre a defesa dos direitos humanos, quando, na verdade, não se importavam com milhões de inocentes morrendo à míngua em muitos lugares, também não se preocupando com os miseráveis e os mutilados deixados para trás em seguida às suas invasões.

6

Eu evitava fazer uma oposição declaradamente aberta à coalizão, mantendo ainda alguma esperança de que os ocupantes pudessem realizar um bom trabalho sem prejudicar os inocentes. Eu usava palavras boas em relação a eles.

- Os colonizadores podem fazer algo útil lá.

Ao ouvir aquilo, Guerra Torres deu uma gargalhada tão espontânea, escandalosa e arrogante, que chegou a assustar alguns turistas próximos a nós. Mal sabiam eles que ele ria de ódio e revolta diante de sua própria impotência - por não poder sair distribuindo pancadas a torto e direito ali. Considerava aquela gente diretamente responsável pelas invasões, os mantenedores das tropas de coalizão, com seus impostos e doações para as campanhas políticas dos líderes, presidente, deputados, senadores e governadores que apoiavam o envio das Forças Armadas a outros países.

Compreendi que seria impossível convencer o garoto de que as invasões, em última instância, pudessem levar algo de bom a algum país. Sua cabeça estava feita. E muito bem feita... por ele mesmo. Ninguém podia mudar aquilo.

- Destruíram quase tudo lá! Hospitais, escolas, bibliotecas, museus, sítios arqueológicos... milhares de vidas humanas! Só não arrasaram o país inteiro graças ao heroico trabalho da Resistência... com erre maiúsculo... um trabalho admirável.

- Muita gente acha que é terrorismo o que você chama de Resistência.

Acreditei que ele ia ter um treco ao me ouvir dizer aquilo. O rosto dele se transformou, estava vermelho, os olhos arregalados, malignos, a respiração suspensa - como se tivesse levado um soco no estômago e se preparasse para reagir com todas as forças. E reagiu de um modo que me surpreendeu outra vez.

- O maior terrorista é aquele que tem as Forças Armadas sob seu controle, que usa o exército, a marinha e a aeronáutica pra atacar e destruir! Esse é o maior terrorista, o mais perigoso. Diante dele, outras organizações criminosas não passam de pequenas empresas de fundo de quintal.

Aquilo foi demais para mim. Respirei profundamente, procurando manter a calma. Certas ideias são de aceitação difícil. Mas eu queria ver até aonde vai um maluco.

- Como assim? Você tá dizendo que uma das maiores potências mundiais se transformou numa entidade terrorista pra comandar o ataque a um país?

Aí ele se mostrou descontraído, se ajeitando na cadeira, alisando o queixo, depois os cabelos, aparentemente muito satisfeito com o que ia dizer. Eu me preparei para ouvir algo estrondoso de novo. Mas, curiosamente, não foi isso que aconteceu. Por alguns segundos, ele se pôs a refletir sobre o que ia falar e, de um modo estranho, quase doentio, pareceu mudar de ideia. Com um gesto da mão que denunciava impaciência e desprezo, começou a pronunciar frases rápidas.

- Há muitas coisas em jogo. Os países pobres seriam os mais prejudicados com as invasões. Iam ficar de joelhos pra sempre. Só essa possibilidade basta pra que qualquer agressor seja expulso. Nenhum invasor é bem-vindo. O povo, em qualquer lugar deste mundo fodido, tá de saco cheio. Por isso devemos muito à resistência. Ela estabelece algum equilíbrio ao não permitir que os invasores continuem destruindo e saqueando.

- Não é bem assim. Também procuram levar o progresso e o desenvolvimento aos mais atrasados e...

- É mentira! A invasão, além de um crime contra a humanidade, é um grande ponto de discórdia entre ricos e pobres. Se as invasões acabassem numa conquista plena, os poderosos iam dominar de vez o mundo. O que o invasor quer é o domínio e a posse. Ele quer se apropriar dos recursos minerais e do petróleo a baixo custo, que está quase na superfície, ao contrário do óleo à grande profundidade. Esse óleo à grande profundidade é caro. A exploração em águas rasas tem custos menores. Números. Cifras. Lucros. Os olhos do invasor é só uma caixa registradora. Ele quer tudo isso pra uso próprio, jamais em benefício da humanidade.

- Meu caro, você exagera em tudo que diz. Se havia ali uma ditadura e os ocupantes chegam pra derrubar essa ditadura e instalar um regime melhor... aliás, uma boa parte da população apoia o que tá acontecendo. Ou é mentira também?

Ele olhou atentamente nos meus olhos e deu uma risada de malignidade contida, mas visível, um riso sarcástico. E mandou lenha novamente.

- A invasão é um jogo premeditado das grandes potências. A festa começa com a invasão e a destruição de grande parte da infraestrutura de um país, além de milhares de mortos pra aterrorizar a população. Aí os invasores são vistos como deuses, por uma parte do povo, pequenos deuses investidos de um grande poder de destruição e reconstrução ao mesmo tempo, os restauradores da vida. Porque eles destroem e depois chamam seus compadres, empenhados na tentativa de reconstrução, que se pode estender por vários anos, dependendo do poder de fogo da Resistência. E quem são os compadres dos invasores? Eu digo a você quem são esses compadres. São os donos das companhias petrolíferas, da indústria de armamento, são os fornecedores, transportadores, empreiteiros etc, enfim, todo mundo ligado à logística e mais outros que nem sabemos como ou de onde saem e como conseguem seus bilhões de dólares à custa dos países invadidos.”

Eu não concordava com muita coisa que ouvia sobre as guerras, ocupações ou invasões, sei lá o quê. Mas às vezes ele colocava o negócio sob um tal ponto de vista que não deixava muita margem ao interlocutor para tentar desconstruir aquele raciocínio. Acredito que seu desejo era fazer um discurso veemente contra as invasões, mas sob o ponto de vista dele, obviamente, porque nem todos... aliás, a maioria não pensava daquela maneira.

A verdade é que cada um quer ter suas próprias ideias sobre tudo. Não existem verdades absolutas, não, senhor; o que há são narrativas querendo se sobrepor uma à outra. Como eu podia saber se correspondiam à realidade as informações que ele possuía? De um modo geral, eu considerava um pouco simplista sua posição. Parecia mais a visão de um jovem empolgado num grupo de estudantes que discute em bibliotecas. Também não seria totalmente equivocado, por exemplo, supor que ele buscasse um assunto para se entregar de corpo e alma feito um maluco sem maiores propósitos na vida. Há muita gente desse tipo, buscando um escudo para se proteger ou mesmo se esconder atrás, pessoas dominadas por uma monotonia ou pela mediocridade.

7

E aquela manchete no jornal. MORTOS 20 TERRORISTAS - que para ele eram combatentes da resistência.

- O heroico trabalho da Resistência!

Vixe, enchia a boca para se referir aos insurgentes.

- Que imprensa malvada! Por que chamar a Resistência de terrorista? Dá vontade de cuspir sobre esses puxa-sacos.

De um lado, Guerra Torres via os invasores, os “novos bárbaros”. Do outro lado, a “mídia canalha” apoiando a invasão. Durma-se com tal barulho. Ele acreditava que o futuro da raça se comprometia seriamente. Julgava não haver mais ninguém, de fato, para defender o ser humano. O “ser humano” dele geralmente significava, ou se restringia, às populações dos países mais pobres, incapazes de se defender sozinhos, sem a ajuda de outros povos, sobretudo diante da famosa coalizão, formada pelas maiores potências mundiais.

Resumindo um pouco grosseiramente, eu diria que, sob as alucinantes interpretações dele, somos criaturas sanguinárias incorrigíveis - jamais deixaremos de praticar o massacre, até a destruição final. Os mais fortes, bem entendido, sobretudo as grandes potências, não irão abandonar suas posições de xerifes do mundo.

Ele ia se enterrando naquela coisa macabra de contar cadáveres, comparar o número de mortes entre invasores e rebeldes, conferir as baixas de um e de outro lado. Eis aí um dos males da atualidade - o espetáculo do horror. A informação via satélite, na hora, no mesmo instante, com o sangue quente ainda. A mídia quer audiência, precisa de anunciantes. O rendimento da empresa é tudo, só isso. Nem é tão importante se os fatos são distorcidos ou não... ainda que à custa do enlouquecimento de uns e outros.

Guerra Torres se via percorrendo diariamente um campo de batalha repleto de sangue, vítimas mutiladas, pedaços de corpos. Sentia mesmo um mau cheiro em volta, como se trouxesse a mortandade, causada pela invasão, para o espaço físico do seu cotidiano. Um efeito tétrico. Sensações tão marcantes causavam a ele náuseas e dor de cabeça. E seu rancor pelos invasores crescia minuto a minuto. A costumeira pontada no peito ao ligar a tevê, principalmente quando as estimativas internacionais apontavam milhares de mortos e mutilados.

Ele ia esvaziando latas de cerveja, uma após outra, na frente da tevê, xingando as “tropas da coalização” e sentindo uma necessidade de estar, de algum modo, ao lado dos invadidos, tendo pena deles, se condoendo, lançando maldições sobre os invasores e bebendo cerveja.

Foi em meio ao desespero, à desilusão, e também ao medo, que Lucila pensou nos pais. Não havia mais ninguém a quem pedir ajuda, exceto aos seus pais.

Ela fez um jantar para eles. Era um dia de semana, comum, sem nada de mais para comemorar; aparentemente não havia motivo para um jantar especial. Guerra Torres passou a se mostrar arisco, desconfiado, ao mesmo tempo em que ia se vendo sem jeito sobre os olhares recriminadores dos “sogros”. Eles tinham toda a pose de quem estava ali para cumprir algum trecho ensaiado, parecendo mesmo não se importar de se mostrarem insatisfeitos desde o início. Olhavam com impaciência para ele enquanto comiam, como se desejosos de logo dar inicio a uma conversa importante - daquelas que antecipam a gravidade do assunto nos olhares tensos e nas frases preliminares.

Guerra Torres concluiu, acertadamente, que a companheira havia dado com a língua nos dentes, procurando consolo junto ao pai e à mãe. Sobretudo com a mãe ela mantinha contatos regulares; provavelmente as duas já viam Guerra Torres como a um pobre-diabo se autodestruindo, bebendo cada vez mais e se enterrando naquele assunto de guerras e invasões e, o que era pior, sem nada saber verdadeiramente sobre o assunto, obcecado pelo número de mortos nas batalhas, se comportando como um maluco tentando controlar os ataques e investidas da resistência sobre os invasores, como se ele mesmo estivesse participando da coisa toda.

Os sogros, na verdade, estavam de olho no desenvolvimento das relações entre o jovem casal. Acredito que eles foram incapazes de enxergar o salto que o rapaz havia dado mentalmente, talvez impulsionado por um começo de loucura, mas um salto que leva alguém a se distanciar das banalidades diárias, se preocupando com coisas mais sérias - ainda que a suposta seriedade possa vir a ser julgada como um despropósito, algo inútil e sem um valor que a corrobore diante dos fatos.

Naquele jantar, depois da sobremesa, quando esgotados os assuntos sobre os quais se fala durante uma refeição, mãe e filha foram lavar a louça enquanto sogro e genro se posicionavam na frente da tevê, na sala, se acomodando no sofá.

Ao participarmos de uma reunião suspeita, em que notamos a possibilidade de alguém se lançar sobre nós para tentar mudar esse ou aquele ponto de vista, é preciso cautela, temos de estar atentos e buscar destruir a cumplicidade que se instala ao redor. Guerra Torres pensava sobre isso ao observar com atenção o sogro e suas tentativas de iniciar a conversa. O pai de Lucila ia se mostrando embaraçado naquela situação, talvez não acreditasse muito em seu poder de convencimento... talvez estivesse pensando: você não pode chegar e ir dizendo a alguém tá bem, cara, agora pare de beber, principalmente se estiver na casa do sujeito. Isso não se faz. Guerra Torres compreendia a hesitação do sogro e se aproveitou dessa fraqueza aparente para lançar de cara a pergunta.

- O senhor faz ideia de quantas pessoas já morreram hoje em batalhas estúpidas e sem sentido?

Aquilo não exprimia só revolta e desejo de fugir de outros assuntos; era também vontade de se pôr acima das futilidades e da pobreza da luta diária pela sobrevivência. Ele era o tipo de jovem que acredita ser importante se preparar para algo mais atraente que apenas se alimentar, dormir etc. Decerto os acontecimentos iam levando o garoto a uma nova busca de realizações pessoais, num patamar mais elevado ao qual estaremos inseridos se levarmos em conta o envolvimento e as relações globais, imediatas e quase sem restrições, que se tornaram possíveis com o advento da internet.

O sogro dele levou um susto ao ouvir aquela pergunta sem sentido. Ninguém espera uma pergunta desse tipo durante uma conversa normal. O homem hesitou por um instante e depois improvisou.

- Meu caro, nem sei quem morreu. Você tá falando da guerra? Mas estão guerreando lá, no outro lado do mundo. Que temos com isso?

Guerra Torres me confessou que esteve a ponto de saltar sobre o sogro.

- Como o senhor pergunta o que temos com isso? Milhares de inocentes estão morrendo, milhares de pessoas estão morrendo devido à selvageria de uns poucos!

O sogro se manteve indiferente.

- Não podemos fazer nada. É um problema deles.

- Pois esse é o meu desgosto, justamente essa merda de impotência. Vivemos num mundo em que alguns fazem a guerra só pra ganhar dinheiro à custa do sangue alheio!

O sogro não se convencia.

- Alguma coisa boa deve sobrar. Eles querem modernizar países atrasados. Com tecnologia de ponta e muita ciência.

Guerra Torres não acreditou no que ouvia.

- O senhor diz que invadem e matam em nome da ciência?

- Mais gente significa um consumo maior. Supomos que possam realmente proporcionar melhores condições de vida àquelas pessoas. É o capitalismo. Ou razões de Estado, meu caro, algo que nós, simples mortais, não entendemos.

O garoto arregalou os olhos cheios de ódio e teve vontade de cuspir sobre o sogro; não admitia que alguém pudesse defender os invasores. Ele, ao contrário, sabia exatamente do que se tratava, pelo menos pensava assim.

- Imagine cento e cinquenta mil invasores recebendo tudo, tudinho, durante anos, das empresas dos compadres, sem nenhuma concorrência, recebendo tudo, comida, roupa, agasalho, uniforme, calçado, armamento de todo tipo, todas as munições, tratores, tanques, máquinas diversas e até objetos pessoais como cigarro, isqueiro, sabonete, preservativo, escova e creme dental. Já pensou? Praticamente uma cidade com 150.000 habitantes tendo poucas empresas como fornecedores e sem nenhuma concorrência. Muita gente enriquecendo à custa do sangue alheio. É isso que o senhor chama de capitalismo e razão de Estado?

De repente o sogro pareceu despertar de um transe, estalando os dedos, aliviado, como se livre de um enorme peso.

- Ah, ah, eu sabia! Você tá brincando. Só pode ser. Quer mudar de assunto, evitar falar sobre os vícios. Poxa. Como não vi antes? Você é esperto, hein! Me enganou direitinho.

Guerra Torres estava de boca aberta.

- Vício? Mas isso é um problema meu!

O sogro insistiu.

- Que pessoa em sã consciência vai querer se torturar assim, se anular por causa de um assunto lá no outro lado do mundo? Hein? Que garoto! Tá bem, não precisa dizer mais nada. Já entendi. Mas, olhe, se você acha que vou cair nessa...

Guerra Torres achou melhor parar; não queria continuar a discutir com o sogro.

- Não tô preocupado com meus vícios, quanto mais em dar explicações a alguém.

A partir daí a conversa foi arrefecendo... até o momento em que havia apenas o esforço para não demonstrar claramente que nada seria mais desejável, de ambas as partes, que uma rápida despedida.

Quando, enfim, os pais de Lucila partiram, ela se aproximou do companheiro.

- Sobre o quê vocês conversaram?”

- Invasões! Sobre o quê você acha que eu ia conversar? Existe alguma coisa mais importante?

Lucila repetiu o que vinha dizendo há tempo.

- Você não tá bem.

- Claro que não! Com tanta gente se lascando, o que você queria?

Tudo definitivamente ligado ao mesmo tema, àquela coisa colada ao cérebro dele dum modo incontornável, aniquilador.

E foi dormir.

De repente estava a discutir com o sogro em um lugar qualquer, falando sobre as chances em uma partida de sinuca. Mas a barriga do sogro começou a roncar, a inchar, e parecia que... havia algo ali se rompendo! Aterrorizado, Guerra Torres viu ser expelido daquele ventre em frangalhos um improvável monte de cartas de baralho, e figuras que pareciam adquirir vida em meio aos pedaços de outros objetos não identificáveis, mas sem aquele aspecto repulsivo que acompanha cirurgias e partos, ao contrário, tudo sem sangue, com higiene e limpeza admiráveis. Então aconteceu: as figuras das cartas se transformaram em invasores de um instante para outro e foram com tudo para cima dele, gritos, fuzilaria, muito sangue, pedaços de corpos…

8

Deus do céu. O negócio ia piorando. Francamente, não é fácil entender o porquê daquilo tudo. Por que ele passou a odiar os novos bárbaros de um modo doentio? Permanecia irritado, nervoso, aliás, o que vou relatar agora é até curioso e um tanto revelador.

Como eu disse, ia crescendo o rancor dele contra tudo e contra todos. Especialmente em se tratando daquela dupla de estrangeiros do povo dos novos bárbaros, quero dizer, dos ocupantes - uns caras muito brancos e engravatados que andam por aí com pastas e Bíblias debaixo do braço convidando os outros para sua religião. Guerra Torres sentia a raiva crescer ao se aproximar deles. Queria mesmo dar porradas. Um dia investiu contra a dupla.

- Como vocês veem a invasão?

Eles se acharam surpreendidos diante daquela pergunta à queima-roupa, sem mais nem menos, partindo de alguém que nunca tinham visto. A princípio não souberam responder, indecisos, trocando olhares desconcertados e apertando entre as mãos suas Bíblias. Depois, aparentemente dando conta do que se passava, foram articulando as palavras, devagar, procurando responder com cuidado, como se pisando em ovos, talvez querendo encontrar a frase certeira, convincente... mas não conseguiram. Após gaguejarem um pouco e, com a vermelhidão tomando seus rostos, pareciam inseguros e desarmados.

- Eles começaram a dizer bobagens com aquele sotaque nojento, nós não saber, nós estar muito longe, não saber o que acontecer lá.

Guerra Torres sorriu com desprezo, vencedor, altivo, se distanciando deles sem maiores explicações, deixando os caras de boca aberta e ainda vermelhos. Havia conseguido, de fato, uma pequena vitória, embora a dupla não soubesse o que responder porque não havia o que responder - atuavam em outra área. Eram religiosos.

Provavelmente tinham acabado de sair de uma conversa amigável com alguns pobres coitados da periferia pensando em recitar trechos bíblicos e louvar a Deus, nem sonhando com invasões ou guerras. Mas o garoto confundia tudo àquela altura, amalucado, enlouquecido, tirando suas próprias e estapafúrdias conclusões. E não é que ele tentou justificar aquela abordagem alucinada?

- Qualquer um que pertença ao país dos invasores poderá lucrar mais cedo ou mais tarde, de uma maneira ou de outra, com esse tipo de invasão, porque suas empresas, seus parentes, vizinhos e compadres estão faturando alto lá, muita grana em jogo, todos querer um pouquinho - ele disse zombando sobre o sotaque deles.

Guerra Torres estava louco.

Um dia, observando a dupla de religiosos entre as gôndolas de um supermercado, foi novamente dominado por uma raiva tão grande, sentiu outra vez aquele ódio tão profundo que, fora de si, tentou se apossar de uma faca na prateleira para se lançar sobre os outros dois. Mas havia funcionários da loja por perto e ele se conteve, intimidado pela presença deles. Deu a volta por detrás da gôndola e, ao chegar à seção de utensílios para churrasco, deparou com um balaio repleto de espetos, facões e garfos compridos, e se pôs a imaginar aqueles ferros atravessando o peito dos caras. Não era um soldado? Não integrava a Resistência? A heroica Resistência? Quer dizer, ele não era um soldado, mas àquela altura se considerava um autêntico aliado do país ocupado. Mas respirou profundamente e pensou duas vezes. Os carros da polícia estavam nas redondezas; muito provavelmente não haveria como escapar.

Nossa, aquela foi por pouco. Talvez fosse melhor se ele tivesse agido ali mesmo, infelizmente, para os dois rapazes estrangeiros... esperem, não estou louco, não, é que a tragédia teria sido menor, muito menor, se ele tivesse avançado sobre os dois naquele dia, indo parar, em seguida, num presídio.

Depois de sair do supermercado, ficou parado por algum tempo sobre a calçada. Os religiosos abaixaram a cabeça ao cruzarem com ele. Mas aquilo não era suficiente

para Guerra Torres, eles teriam de pagar pelos crimes do seu país cometidos no exterior. Pensou de novo nas facas e espetos dentro do balaio no mercado... Ah, se pudesse agarrar um deles, ou os dois, num beco escuro...

As pessoas cruzavam com ele nas ruas e não imaginavam o que ia por trás da sua expressão cheia de raiva, o semblante de um assassino mesmo prestes a agir, embora se esforçasse para conter os ímpetos entre a multidão. Queria parecer um cara normal, honesto. Mas pensou: de que adiantava ser honesto quando a moda era saquear países inteiros?

Em seguida se arrependeu por não ter seguido a dupla.

- Um dia ou outro, quem sabe...

Aquele tipo de promessa era de fato um consolo diante da frustração, uma maneira de acreditar que pudesse vir a fazer algo que diminuísse um pouco sua ansiedade. O mundo ia se tornando insuportável. E deixar tudo assim? Como engolir? Talvez houvesse algo a fazer... teria que se preparar.

Ao entrar em casa, encontrou Lucila mexendo em uma coleção de CDs. Pediu a ela que pusesse alguma música para tocar. Ouviu uma antiga canção estrangeira, que havia feito sucesso em outros tempos. Perguntou a Lucila se ela gostava de verdade daquelas músicas.

- Por quê não? São antigas, mas bonitas.

- Uma pena que sejam estrangeiras.

A aversão a outras línguas e a outros povos ia crescendo.

- Querido, você tem que parar com isso. Eles são inteligentes e criativos, educados na maioria das vezes. Uma parte nem apoia a guerra.

Guerra Torres não se segurou.

- Você não sabe o que tá falando! Eles acreditam que podem invadir outros países porque são mais poderosos, porque têm um exército maior! Acham que podem invadir e saquear! E essa mensagem se irradia pela sociedade, por todas as nações, de modo que um pobre coitado lá no fim do mundo, que se vê numa posição de vantagem em relação a outro, também já acredita que pode bater e roubar à vontade! No fim das contas, qualquer um pode agir dessa maneira.

- Que exagero. Não é bem assim. A invasão é coisa de um pequeno grupo de pessoas.

- Bobinha. Não é a população que paga imposto e financia as Forças Armadas? Por que não pedem o fim da invasão? Cadê os protestos exigindo a retirada dos invasores? Por que não vemos isso?”

- Eles têm mais o que fazer.

- Exatamente! Estão se lixando para o que acontece nos outros países. Isso quer dizer que também são culpados! E irão lucrar de algum modo com essa invasão.

Lucila sorriu tristemente, desanimada.

- Vem cá, vamos dançar um pouco, esquece o resto e vem dançar, tire essas coisas ruins da cabeça, vem...

Ele foi. Mas não esqueceu o resto. Havia em sua cachola um amontoado de cenas brutais e sangrentas. Ainda pensava sobre os religiosos. E contou a Lucila.

- Segui uns caras na rua.

Ela parou de dançar, se afastou um pouco e ficou olhando para ele, assustada, de boca aberta, presumindo o pior. Depois conseguiu reagir.

- Como assim? Seguiu quem? Por quê?

- Aqueles estrangeiros que andam pra cima e pra baixo com uma Bíblia debaixo do braço. Fiz uma pergunta a eles... se apoiavam a invasão... mas não responderam. Acho que tiveram medo...

- Santo Deus... Não acredito... Você tá passando dos limites... ou melhor, você já passou dos limites.

A voz dela era fraca, sem muita convicção. Aí se sentou e ficou olhando para Guerra Torres, incrédula, abatida diante daquela confissão.

- Está me parecendo um caso muito sério... muito sério mesmo. O problema é que não sei como te ajudar.

Naquele momento, Lucila se arrependeu de haver conhecido Guerra Torres um dia. Estava preocupadíssima, assustada, com medo, não só por ele, mas principalmente por ela própria e por sua família. E se o metido a besta viesse realmente a matar alguém num momento de fúria descontrolada? Ou se viesse a cometer algum ato contra ela mesma? Tudo é possível ao convivermos com um louco.

Em seu desespero, ela já não sabia direito que argumento usar.

- Já pensou se chamam a polícia? Você podia estar na cadeia agora. Meu querido, abra os olhos. Esses aí, que você seguiu, são pessoas religiosas, que deixam seu país pra falar de Deus em outros lugares. Só isso. O que, aliás, já é muito.

- Claro, uns anjinhos... Uma ova! Mentirosos é o que são!

Ela estremeceu àqueles gritos.

9

Quando os meandros da mente se tornam confusos e assustadores, parece não haver saída para a gente se livrar dos pesadelos - nem de noite ele conseguia se safar. Me contou alguns sonhos horríveis, provavelmente devido a sua obsessão com o assunto.

Num desses sonhos, estava num campo com dezenas de cadáveres e ouviu uma vozinha fraca, chorosa, ali, entre os pedaços de corpos e poças de sangue... um espetáculo do horror, exalando o insuportável mau cheiro característico de sangue e de membros amputados, de fezes misturadas à urina, sob um céu escurecido, negro, pavoroso, tornando tudo mais horripilante...

E ouviu aquela voz, ei, você, você aí, é, você mesmo, venha cá, um quase sussurro, um lamento, e Guerra Torres, embora aterrorizado, encontra forças para descobrir de onde vem aquele fiapo de voz... e vê um corpo, ou melhor, o que resta do que há pouco era um corpo, um pedaço, é, um pedaço de ser humano, sem as pernas e com os braços estraçalhados, vertendo sangue, muito sangue, o peito em tiras de um vermelho encharcado, negro em alguns pontos, e a cara daquele resto humano transformada numa horrível expressão de dor, a boca se contorcendo na tentativa de articular palavras.

Guerra Torres, através de um grande esforço, vence a própria paralisia, o assombro, o medo e se aproxima, lentamente, ouvindo os pés chafurdarem nas poças rubras, como se atraído por um ímã, uma força irresistível, em direção ao pedaço de corpo entre tantos cadáveres e lamentos de dor. De repente, o ser mutilado parece adquirir uma energia extraordinária, através de uma revitalização surpreendente, fazendo vibrar sua voz de maneira intensa, forte e assustadora, VEJA COMO NOSSAS CRIANÇAS ERAM FELIZES ANTES DA INVASÃO!

E a cena paradisíaca, como num milagre, surge à direita de Guerra Torres, pairando sobre os corpos destroçados, uma cena exibindo um monte de crianças brincando em correria à volta de algo que parece um bloco de pedra unindo o bem-estar e a alegria deles à paisagem ensolarada ao redor. Aí uma forte explosão destrói tudo e ele se vê de novo cara a cara com o pedaço de corpo, recuando uns passos na semi escuridão, contra a própria vontade, ao que identifica como sendo uma ordem, um ruído sobrenatural de vozes, cochichos, gemidos, lamentos, enfim, um coro tenebroso se erguendo daquele monte de corpos dilacerados e se transformando em gritaria - VÁ VINGAR OS INOCENTES!

Geralmente ele acordava sobressaltado, respirando com dificuldade e mantendo recordações vívidas daqueles pesadelos. Suando, tinha vontade de chorar, como se compelido a se sentir massacrado junto com as vítimas dos invasores - quase uma obrigação moral. Para ele, estava tudo muito claro: aquela invasão era um absurdo, um crime pérfido, hediondo, monstruoso, contra a humanidade.

Qual, então, seria a mensagem do invasor? “Como é gostoso destruir o país dos outros!” Principalmente quando é possível enganar parte da comunidade internacional encobrindo interesses comerciais com discursos sobre direitos humanos!

A guerra nada mais era, então, um grande negócio para os mercadores da morte.

Um dia Guerra Torres confessou estar sentindo a formação de uma tempestade em seu interior, com descargas assustadoras, incontroláveis, criando uma nova ordem (ou desordem) em sua estrutura pessoal. E tal perturbação parecia deixá-lo engasgado, sem ar. Seguia feito um desesperado se revoltando contra tudo, um maluco ansioso à cata de manchetes nos jornais, um louco procurando sarna para se coçar, torcendo para encontrar alguma frase, uma dica, algo que aliviasse um pouquinho sua alma torturada, como por exemplo uma insurreição generalizada contra os invasores, um levante devastador.

Era prisioneiro de um sentimento heroico: queria estar lá, lutar ao lado dos mais fracos, matar o inimigo, um a um, limpar o território!

Também ia se vendo impotente, sem saber como agir. Tudo se embaralhava então. Começou a acreditar que podia isso e aquilo, que ia salvar o mundo, convencer o povo a participar de uma grande rebelião e expulsar os invasores de todos os lugares. E logo se abatia sob a impotência e a frustração. Queria, sim, agir, talvez como um super-herói defendendo os povos violados, mas se sentia um inválido, um impotente, sob aquele sentimento de urgência. Mas não se sentia inutilizado mentalmente. Criava os mais inesperados discursos para atacar as qualidades morais e a competência do invasor.

- Eles acreditam que são superiores porque possuem a maior parte das riquezas, das descobertas, a maior parte de prêmios Nobel. Mas podem ser tão selvagens e assassinos como qualquer um.

- Não sei... aliás, acho que não. A propósito, o que você sabe sobre nobéis?

- Alguns deles têm a sala de visitas abarrotadas de nobéis. Cem, duzentos, trezentos prêmios. Quanta honra e poder! Ditam a moda. E se abaixa a cabeça pra tudo o que dizem. Vamos invadir um país? Todos seguem atrás alegremente, rindo, farreando: os vira-latas dos medalhões. Mas a estante cheia de prêmios e outras conquistas é só fachada, um aceno pros otários. O discurso da paz existe só pra enganar os tontos. Concorda?

Talvez ele tivesse razão. Talvez seja preciso esperarmos por outras civilizações capazes de transformar tanto poder em igualdade e paz. Aliás, estive lendo sobre essa possibilidade, de uma paz mundial, em pesquisas publicadas recentemente. Talvez não seja improvável um futuro menos bélico entre os seres humanos, sem guerras e com mais compreensão, através de esforços para mudarmos, por exemplo, a maneira dos sistemas de ensino, abordando novos aspectos da convivência civilizada entre todos com uma separação básica: nós (a Terra), contra eles, isto é, contra tudo que venha de fora. Então seremos um povo sem fronteiras, uma verdadeira humanidade integrada em todos os sentidos. Mas quando?

Guerra Torres se descabelava ao ler sobre os lucros dos invasores.

- Empresas particulares faturando alto com a morte e a destruição. Me responde aí, cara, isso é correto? Mas é assim que enriquecem, saqueando e destruindo. O lucro obtido por eles, à custa do sangue alheio, contribui pra estimular um bom estilo de vida às suas famílias nos interiores pacatos de cidades bem cuidadas e protegidas em seus países. O lucro vem através da indústria de armas e munição e de outros prestadores de serviços que abastecem os invasores. Imagine uma pequena cidade de 150.000 habitantes (os invasores) recebendo tudo dos compadres. E nisso não há nenhuma competição! Os fornecedores vão entregando tudo sem se preocupar em baixar os preços, sem concorrência. Imagine cento e cinquenta mil recebendo armas e munição, em primeiro lugar, depois, comida, roupa, agasalho, calçados, botas, remédio, recebendo tudo isso das empresas amigas, dos compadres... é fácil ver que pra cada punhado de nativos destroçados há um monte de invasores e seus protegidos babando feito cachorros loucos em busca de um lucro cada vez maior. Você é capaz de apontar aí alguma distorção dos direitos humanos?

Fiquei mudo. Ele havia feito uma pergunta difícil de responder. Eu estava paralisado. Em seguida o garoto estalou os dedos, exigindo atenção, como se brincasse com um cachorrinho... ou como se estivesse falando com um débil mental.

- Você é capaz de entender que, enquanto o invasor encobre seus interesses comerciais e financeiros com discursos sobre direitos humanos, está, na verdade, tentando destruir um país pra enriquecer a si próprio? Você ainda tem dúvidas?

Um grande negócio para os invasores era a guerra, para ele.

O modo de Guerra Torres encarar a coisa me deixava desconcertado. Uma maneira diferente de enxergar a invasão... pelo menos diferente no sentido daquilo que a imprensa vinha falando sobre a procura das tais “armas de destruição em massa”.

Então ele disse uma coisa muito feia... meu Deus, eu nem queria ter ouvido. Aliás, prefiro não comentar. Porque aquelas palavras me trouxeram um mal-estar repentino. Por outro lado, penso que, se eu deixasse de relatar, o negócio ficaria incompleto, porque foi somente naquele instante - diante daquelas palavras - que vi a carga total de ódio que um ser humano pode trazer consigo. Ódio e revolta. Então enxerguei o retrato de corpo inteiro de um revoltado.

- Não pode haver perdão pros invasores - ele disse. - Não deve haver piedade. Que morram em maior número possível. Quanto às cicatrizes ambulantes, aos mutilados, aleijados e paraplégicos que conseguem sair vivos, que se arrastem aos pedaços por muito tempo entre eles mesmos, pra que recordem a cada instante o crime que praticaram.

Tive vontade de chorar ao ouvir aquelas palavras. Tentei me acalmar, procurando uma desculpa para tanto sangue-frio, afirmando a mim mesmo que ele estava louco... que alguém em estado normal não teria dito aquilo, não seria tão cruel.

10

Aqueles foram dias difíceis para ele e sua garota.

Lucila ia procurando estimular o companheiro a pensar em outras coisas, assuntos mais apropriados a alguém da sua idade, como fazer outro curso superior e tal, mas não teve jeito. Ele passou a contar cadáveres, cada vez mais. E se tornava mais cuidadoso ao marcar as baixas de um e outro lado, os mortos entre os invasores e os nativos.

Tinha comprado uma caderneta especialmente para anotar a quantidade de mortes, todos os dias, acompanhando os números da invasão através de várias pesquisas na internet, jornais, tevê etc. E tudo aquilo o deixava mais irritado, agressivo.

Lucila pedia a ele que parasse de beber, mas, em vez disso, ele se tornava mais amargo e violento; ameaçava bater na companheira. Depois, mais calmo, pedia desculpas. Ela, com humildade, passava por cima de tudo, queria seguir convivendo amigavelmente, amorosamente... Mas como? O garoto ia mostrando apenas loucura e agressividade.

De repente ele pegava as duas armas que havia comprado e brincava com elas, fingindo atirar nos invasores. Bam! Bam! Bam! E quando saía com as armas para treinar em regiões isoladas, distantes do balneário, levando munição e latas vazias de cerveja para alvo, Lucila se via desesperada, acreditando que pouco depois alguém, a polícia, um hospital, um conhecido, enfim, ia ligar dando conta de uma tragédia.

Mas a tragédia era ele mesmo.

E lá está Guerra Torres torcendo pela Resistência.

- Desgraçados! Mandaram bomba! Democracia? Liberdade? Tudo mentira! Mentirosos! Nem toda a balela sobre paz foi capaz de conter a barbárie. História pra boi dormir esse negócio de buscar democracia pra outros povos. Nem eles mesmos respeitam sistema nenhum. Não é verdade?

Lucila desacorçoada, sim, senhor, perdendo o ânimo e a delicadeza.

- Santa paciência, lá vem você de novo.

- Vou sim! Mas com senso de justiça! Porque tô lá espiritualmente. Vou morrendo aos poucos, com as feridas abertas, acompanhando cada vítima dos invasores, gemendo com elas... gemendo e sangrando com elas! E cada vez mais revoltado, porque, alguns que se dizem religiosos afirmam que Deus tá com os invasores, do lado deles! Isso é possível? Como pode ser? Deus ao lado de quem invade e mata?”

Lucila tenta contornar.

- Muitos falam em nome de Deus e agem como o diabo.

Uma explosão na cena da tevê.

- Mais um carro-bomba! É a Resistência! Ah, como eu queria estar lá!

Marcando pau a pau a morte dos invasores. Torcendo para o número subir.

- Podia ter sido cinquenta! Ou cem! Quando a gente vê crianças queimadas, ou jovens mutilados, famílias inteiras destruídas, já não é possível esperar boa coisa do ser humano. Cambada de assassinos! É o fim. Por que o mundo tem de tolerar isso? Por que calam a boca? Por que não exigem a saída dos invasores?

- Você tem de parar com isso. Tá ficando obcecado, meu bem. Só porque invadiram um país... Tenha calma, tudo se resolve. Um dia acaba.

- Vai acabar mesmo... de um jeito muito triste.

- Vem cá, amorzinho, por favor, quer pensar em outras coisas? Coisas boas, saudáveis. É disso que cê tá precisando, desviar os pensamento pra outras coisas. Você tá precisando de carinho, vem cá, muito carinho e um brinquedinho... um neném pra brincar... te distrair... teu filhinho, pra você ensinar a ele como construir um mundo melhor. Vamos fazer um filhinho?

- Coitada. Que mundo melhor? Só se for em outra galáxia.

- Vem cá, benzinho...

- Você tomou o anticoncepcional? Não tô a fim de cometer erros... pôr mais um neste mundo nojento. Só um tonto ou alguém muito mal-intencionado ia pensar em ter filhos agora. Esqueceram de avisar as bobinhas grávidas que andam se derretendo por aí que não tem mais graça exibir o barrigão hoje em dia. Acabou a poesia. Lennon estava certo, acabou o sonho... e faz tempo.

A campainha. Lucila estremece; justamente as visitas que ela menos queria: os amigos da biblioteca. Com caixas de cerveja. Confraternizam com Guerra Torres e se deliciam ao ajudar nas contas.

- O número passou de mil! Ontem morreram 17 numa emboscada.

- Ótimo! Pena que muitos nativos estejam morrendo também.

- Mas a Resistência continua firme!

- Uns heróis.

- Sem dúvida. A história da Resistência daria um filme. Por que não aparece alguém pra fazer um filme sobre a resistência?

- A gente podia fazer dois. O outro seria de terror. Sobre a invasão. Já pensou? Cada cena...

Latas de cerveja rapidamente esvaziadas.

- Cadê o respeito aos direitos humanos? Cadê a turma dos direitos humanos?

- Você acredita em papai noel? Eu te digo, hein! Se não assumirmos logo o desrespeito aos direitos humanos, vamos ficar pra trás.

Vinte latas vazias.

- Veja os grandes. A lei é deitar o porrete. Invadir e tomar posse. Anexar, roubar, matar, destruir, escravizar... os verbos da moda. Do contrário, não se progride. É o que eles dizem.

- Mas eles também...

- Antigamente. Hoje tá tudo mudado. A imprensa não presta, faz de conta que não vê. O povo nem quer saber, se deixa levar…

- Mas falam que…

- Falavam. Agora o papo é outro: invadir. A invasão é um negócio da China.

Quarenta latas.

- Outra coisa. Quando vierem esses moleques dos invasores dando entrevista, dizendo que se orgulham de sua missão, ou de ajudar um povo a progredir, o que podemos fazer é pedir a Deus que a Resistência acabe logo com eles. Pra que parem de espalhar histórias mentirosas.

Lucila preocupada.

- Chega, benzinho. Credo, gente, vocês trouxeram muito. Ele não aguenta tanto.

- Põe noutro canal. Aí! Veja, um novo número. Quantos?”

- Mais cerveja! Vamos comemorar.

- Quantos?

- Calma. Deixa eu dar um gole. Ah, que delícia! Agora sim, o que você perguntou?

- Quantos.

- Mil e vinte e um.

- Só?!

- Espera... vinte e três! Mil e vinte e três. Mas pode aumentar. Há vários feridos.

- Que bosta. A coisa vai devagar.

Cincoenta latas.

- Vejam! Mais dez invasores pro saco! Hip-hip hurra!

Pulos e danças, gritaria, apertos de mão e abraços.

- Esperem. O número subiu de novo!

- Ai, que delícia! Melhor que sexo.

- O quê? A cerveja?

- Quantos?

- Mil e trinta e cinco.

- Perfeito! Eles têm causado muita confusão, invadindo e massacrando nações soberanas, apoiando ditaduras sangrentas, golpes de estado, promovendo falcatruas econômicas, espalhando mentiras, destruição e morte.

- Claro! Usam aquela fachada de povo progressista e bonzinho pra ir agindo por baixo dos panos e minando as resistências, abocanhando tudo, pegando tudo pra eles. E o pior é que muita gente concorda e apoia esse modo criminoso de agir, vai engolindo

sem questionar.

- Aliás, comparada a eles, ao terrorismo de Estado, a Resistência é só uma pequena empresa de fundo de quintal.

- Isso! Porque do sangue inocente derramado no mundo há uma quantidade maior nas mãos dos terroristas de Estado.

- Abaixo os terroristas de estado e seus descendentes de mãos sujas! Que paguem pelo sangue inocente derramado!

- É cada vez mais claro que o principal negócio é o jogo militar, a exploração, a tirania. Nem hesitarão em pisar no pescoço da mãe de cada um de nós pra pegar uns trocos.

- É a velha tática de estar combatendo sempre, criando novas guerras com muita propaganda enganosa. Aí dizem que serão nossos defensores e que irão perseguir aqueles que querem prejudicar a gente. É a velha conversa fiada, não se assuste, vamos te salvar, tá bem?

- E depois o sujeito vai à tevê com aquele discurso fajuto de vamos libertar o povo!

- Que vá libertar o cu da mãe dele, o filho-da-puta!

- Bravo!

- Obrigado.

- Não há de quê.

- A cada guerra criada, milhares de novos empregos pra seus filhos e lucro para suas famílias, proporcional ao aumento do número de vítimas da violência, das invasões, dos golpes de estado financiados por eles.

- Eta, povo esperto! É de se admirar!

-Escuta! Quantos?

- Um mil... aumenta o som! Veja lá! Mil e quarenta.

- Chegamos aos mil e cinquenta amanhã?

- Talvez.

- Pois eu digo que é amanhã! Os malditos tão encurralados. Quer apostar?

- Duas caixas de cerveja.

- Fechado.

Lucila traz guaraná.

- Minha querida, temos de molhar a goela. Não é fácil conviver com o massacre, principalmente tomando guaraná. Estamos destroçados por dentro.

- Pois molhem a garganta com guaraná!

- Destroçados por dentro!

- Oba! Mil e quarenta e cinco!

- Nossa! O que era aquilo? Ce viu?

- Um carro-bomba numa via expressa. Mil e quarenta e nove.

Em seguida os amigos saem. Vão embora. Apenas Guerra Torres não se cansa e continua se dedicando à contagem mórbida. Até não aguentar mais e dormir, desmaiar. Acorda de manhã, a tevê ligada, explosões, destroços, pedaços de corpos.

- Opa! Mil e cinquenta e cinco. Duas caixas. Ganhei! Ué... cadê eles?

Lucila bocejando.

- Foram embora. Faz tempo.

- Me abandonaram?

- Você tá obcecado pela coisa.

- Mas me ajudaram a contar!

- Você parece um louco. Você não parece, é um louco.

- Mil e sessenta! Quero minhas caixas de cerveja!

- Para com isso! Você não pensa na família deles?

- Pensaram nas famílias dos nativos?

Lucila desolada.

- O que posso fazer pra você votar a ser normal?

- Diga aos desgraçados que parem com a destruição!

- Meu Deus, o que tá acontecendo com você, meu querido?

- É simples. Destruíram aquele país.

- Seu louco! Como deixamos a coisa chegar a tal ponto?

- Culpa deles.

- Não é possível. Assim não dá. Você tem que se livrar disso. Pensa um pouco em nós. Já sei! Vamos sair? Comer uma pizza?

- Perdi o gosto. E não posso largar a conta. Tô com um pressentimento... Ce vai ver! Espere um pouco. Vão mostrar a morte de 20 invasores numa porrada só! Não seria demais? E cem por dia então?!

- Quer mesmo continuar com isso? Pois você tá me perdendo.

- Olhe! Veja! Decapitaram três invasores. De uma vez só!

- Eu tô avisando, hein, você vai me perder...

- Um mil e sessenta e sete.

- Eu tô falando!

- ...sessenta e oito...

- Preste atenção!

- sessenta e nove...

- Agora é demais!

- Mil e setenta...

- Tchau.

- ...setenta e dois...

- Fui.

- ... e três...

O isolamento.

- ...e quatro...

A solidão.

- ... e cinco...

A demência.

- ... e seis...

11

Guerra Torres passou a vagar pelas ruas feito um mendigo. E não se desgrudava daquelas armas que havia comprado. De madrugada, cães sujos e maltratados se aproximavam para lamberem seu rosto. Ele nem se importava. De que adianta querer uma vida boa, isso e aquilo e tal, enquanto milhares de inocentes vão sendo trucidados sob bombas e tortura física e moral? Não há mais nenhuma garantia, o ser humano desprotegido em escala global. Que diferença há em se deitar confortavelmente numa cama ou morrer aos poucos sobre a calçada?

Assim ele pensava. Mas muita coisa ia acontecer. Tudo por causa da maldita invasão! Da grana! Que quadrilha! Uns animais!

Naquela madrugada, ao dobrar uma esquina, ele cruzou com um mendigo. Alguns segundos depois se voltou e viu o sujeito de cócoras, sobre a calçada, fazendo cocô. Aí recordou uma famosa escultura, de um homem mergulhado em si mesmo, em seus pensamentos.

Havia no muro, atrás do mendigo, vários desenhos, pichações e uma bandeira do país dos novos bárbaros rabiscada infantilmente, sem as proporções adequadas. Guerra Torres associou aquilo à posição do andarilho e deu vida a uma nova escultura em sua cachola, que denominou de “o cagador”. Duas imagens, uma em cima da outra, formando um só quadro. De modo que o Cagador parecia segurar ostensivamente a bandeira dos invasores rabiscada no muro atrás de si.

Para ele, naquele instante, os novos bárbaros se assemelhavam a pequenos seres, insignificantes e fedorentos. Em seguida se pôs a rir e não pode conter o riso por muito tempo. Então começou a gargalhar. O mendigo se levantou e saiu correndo sem se limpar. E a gargalhada de Guerra Torres ecoou fortemente entre os prédios na madrugada, de um modo sinistro, diabólico, como se ele tivesse o poder de destruir e de fazer todos entenderem a piada em que se havia transformado o medíocre invasor. Depois a gargalhada voltou a ser um riso e, em seguida, os restos de riso sumiram lentamente na escuridão, como um choro fúnebre, sobre mundos arrebentados, destruídos.

12

Ele continuava acreditando, cada vez mais, que a invasão havia sido um erro monstruoso. Por incrível que possa parecer, ele se via no lugar de um herói que pudesse

vingar os oprimidos.

De repente achou que podia aceitar a coisa: encarar a morte. Sentiu que ia morrer em breve. Viu que não havia saída. Era o seu destino.

E que destino.

Mas teve certeza. Não podia voltar atrás. Tudo estava resolvido. Definitivamente. Ele ia morrer. Naquele momento enxergou vastas regiões desertas à frente; regiões que teria de atravessar sozinho, com um sentimento constante de angústia, enfim, um mar de terror. Um interminável oceano de medo, angústia e raiva, numa infinita extensão de águas escuras e sufocantes.

A penúltima vez que vi Guerra Torres foi numa noite chuvosa e fria, exceção na alta temporada no balneário. Porque ali deparamos quase invariavelmente com dias ensolarados e noites quentes, brilhantes. Mas naquela noite o mar estava escuro, não havia lua, e aquela escura imensidão de água rosnava de um modo estranho, sombrio, como se trouxesse até nós, na comprida avenida à beira-mar, um assustador ronco de morte. Um monstro engolindo tudo.

Ele parecia mesmo um mendigo, alquebrado, de roupa suja, um cheiro desagradável. Pelo que entendi, havia tido alucinações. Teria visto um monte de invasores chegando desde a praia e invadindo o balneário. Entendi pouca coisa do que ele dizia, mas, intrigado com sua aparência, e com seus modos e gestos um pouco diferentes do que normalmente se mostravam, me curvei um pouco e tentei fixar com redobrada atenção o movimento de seus lábios para não perder o sentido da frase.

- São eles que mandam seus filhos pra destruir países...

- Eles? Quem? - perguntei, mas sabendo o que ele queria.

Depois de algum tempo bebendo, ele já não parecia desanimado. Ao contrário. Nunca vi o garoto tão eufórico, embora conservasse ainda a aparência de um mendigo. Mas ele estava animadíssimo, e não havia dúvida, animadíssimo como se dominado pela certeza de uma decisão muito importante.

Virou de um só trago mais um uísque e disse que sabia o que tinha de fazer.

- Velho, tenho de agir.

Foram suas últimas palavras. Em seguida se levantou e foi embora.

No outro dia, às onze horas, lá estava ele. Em frente à praia. Eu o observava o tempo todo; eu sentia que precisava fazer alguma coisa mas não sabia o quê. Em seguida ele bebeu dois uísques. Provavelmente havia passado a noite bebendo.

Era um dia de semana. Um vulgar dia de semana. Muitas pessoas fazendo aeróbica, num canto da praia, ao som do Bolero de Ravel. Um mundo de turistas - mui-

tos novos bárbaros.

Manhã de extraordinária luz solar e esplendor. Ondas quebrando na praia; mais além, as cintilações de milhares de reflexos do sol na superfície das águas brilhantes.

E o Bolero de Ravel ecoando fortemente.

De repente, Guerra Torres atravessou a avenida e foi andando sobre a areia, decididamente. Não cambaleava; não parecia embriagado. Foi direto para cima de um grupo de turistas estrangeiros. E se pôs a disparar.

O que houve a seguir foi uma das cenas mais horríveis que eu já vi. De cara ele acertou uns três. Bem no meio da testa. Não havia crianças entre aqueles adultos. Ele usava duas armas e ia recarregando.

Eu estava ali, do outro lado da rua, tinha tentado alcançar ele... nem sei direito para quê... e pensei estar tendo um sonho, um pesadelo... mas o Bolero de Ravel ia chegando com força e eloquência aos meus ouvidos, enquanto os turistas, na praia, caíam sobre a areia. Manchas vermelhas e escuras iam surgindo por debaixo deles, tingindo a areia clara de um vermelho triste, repugnante, enegrecido. Alguns se levantavam do seu banho de sol e corriam, sufocados pelo terror, aniquilados pela surpresa daquela monstruosidade, mas tombavam logo adiante atingidos pelos tiros certeiros dele. Foi aterrorizante ver aquelas pobres criaturas morrendo como animais, sem nenhuma chance de defesa. Uma brutalidade sem tamanho... um horror...

Talvez, enquanto disparava contra os estrangeiros, ele estivesse gritando que também os invasores agem assim. Mas não é possível concordar com ele. Uma selvageria não justifica outra.

Em seguida, havia aquele cenário horripilante, de fim de mundo. A praia forrada de corpos na areia avermelhada. Muitos cadáveres espalhados sobre uma extensão de cem metros, aproximadamente. Ele havia acertado o peito, as costas e a cabeça de 28 turistas (21 homens e 7 mulheres). E lá estava também o seu corpo, já sem vida, atingido por vários disparos de um policial. Recordo que, ao ser atingido pelos primeiros projéteis, ele tombou, se levantou, atirando novamente contra os turistas, caindo de joelhos em seguida e indo adiante, deixando rastros e sulcos avermelhados na areia, disparando outra vez, às vezes acertando o alvo, às vezes errando... se arrastando sobre os cotovelos depois, até que, finalmente, tombou inerte, fulminado sob tantos disparos.

Após um breve e profundo silêncio, interrompido apenas pelas ondas do mar quebrando na praia (mesmo o Bolero havia cessado), comecei a ouvir um choro fraco de criança, depois gritos de mulher, lamentos desesperados, gente com a cabeça entre as mãos, chorando, outros desesperados, sem acreditar no que viam.

Mais pessoas foram surgindo entre sirenes de bombeiros, polícia, ambulâncias e outros carros de atendimento de emergência. Eu havia virado o rosto para o outro lado e abaixado a cabeça, trêmulo, com náuseas, sentindo tontura... não queria acreditar que aquilo tudo fosse verdade. Repetia baixinho para mim mesmo que estava sonhando... que ia acordar em meu quarto, acender a luz, levantar, me banhar... Mas não. Senti minhas faces úmidas, as lágrimas escorrendo...

Agora, de onde estou, vejo o céu cinzento, quase negro, a atmosfera pressagiosa, uma estranha mensagem no ar... folhas secas girando sobre o asfalto, um vento úmido, frio, pessoas ajeitando a gola da camisa, outros mais precavidos vestindo a blusa. É possível que haja um chuvisqueiro daqui a pouco, daqueles que vão se intensificando até formarem gotas grandes e pesadas...

Eu... bem, eu continuo procurando um sentido para a vida... depois de tudo que vi e ouvi, mas não sei... não sei... atualmente estou ingerindo 40 miligramas de fluoxetina, às vezes me sinto bem, às vezes não... um aperto no coração...

Carlo Manesco
Enviado por Carlo Manesco em 16/07/2021
Reeditado em 20/07/2021
Código do texto: T7300508
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