Ele vai voltar

Ele vai voltar

Alexandre Santos *

PREÂMBULO

- Você estava aonde? - Vânia perguntou à irmã Telma, que, na sequência de um 'espere um instantinho', se desgarrara da caminhada pela pista de cooper do condomínio e permanecera desaparecida por alguns minutos.

- Eu estava conversando com aquele pessoal - com um sorriso cândido, Telma apontou o pequeno grupo reunido na borda da piscina - Parece que alguém desapareceu - ela explicou - Está todo mundo preocupado. Os meninos estão tristes, a 'sirigaita da piscina' (era assim que as irmãs se referiam à gostosona permanentemente esparramada ao sol, oferecida aos olhares gulosos da marmanjada) está chorando, os pais estão de cara fechada. O desmantelo é total.

- Mas, finalmente, o quê aconteceu? - a curiosidade empolgou Vânia.

- Sei não - a resposta vaga confirmava o jeitão desligado de Telma.

- Como não sabe??? E você ficou lá fazendo o quê? - indignada, Vânia apertou a irmã.

E, ao modo dela, Telma contou o acontecido.

- No começo, tentei me enturmar com o pessoal chorando um pouquinho, mas, como não deu certo, resolvi fazer um 'Hagá'. Abri os braços e disse 'Calma. Ele vai voltar'. Parece que a tática deu certo, pois, de imediato, todos me deram atenção.

Puxando pela memória já esmaecida pelo tempinho decorrido desde então, Telma lembrou que, em poucos instantes, cercada pelos condôminos, colocando uma pitada extra no seu Hagá, agiu como se fosse uma espécie de pastora. Abriu os braços e arrematou:

- Vocês precisam ter calma e fazer as orações certas'.

Pronto! Se, de um lado, Telma conseguira se 'enturmar' como queria, de outro [lado], o pessoal do condomínio descobrira a solução para os seus problemas. A mensagem de Telma estava dada e ela já podia voltar para casa.

Graças ao Hagá de Telma, o mundo retomara sua jornada pelo universo.

1. A REAPARIÇÃO

A correria no condomínio foi grande. A criançada não continha a alegria. Arrancando uivos de dor na cachorrada da vizinhança, fogos espocavam por toda a parte. Os moradores, tanto os proprietários quanto os inquilinos, não continham o entusiasmo e, mesmo sem precisar de qualquer desculpa para farrear, [os moradores] reabasteceram os frizers e programaram churrascos comemorativos. A festa era geral.

Havia razão para isto. Independentemente do sentimento geral de simpatia pela causa, o desespero inocente e sincero da meninada comovera e contaminara a todos. E, cada qual ao seu modo, todos os condôminos se envolveram na busca. Nada escapou: recantos, touceiras, buracos. Tudo foi vistado e revistado, sem resultado. Já nos primeiros momentos da procura infrutífera, ficara claro que apenas entusiasmo e comoção não seriam suficientes para garantir a graça almejada.

E, com o passar das horas, o desespero cresceu.

Em instantes, impulsionada pelos sucessivos fracassos, a intensidade do lamento espargiu nacos de responsabilidade sobre todos, cobrando algum tipo de reação. Aliás, como costuma ocorrer em momentos como aquele, todos os condôminos se prontificaram a ajudar. Voluntários se dispuseram a fazer 'qualquer coisa' para acalmar a criançada. Uns falaram na oferta de recompensas por informações úteis, outros se habilitaram a prestar queixa à policia, outros se dispuseram a contratar detetives particulares. Houve quem sugerisse a celebração de um culto ecumênico com a participação do bispo, do pastor e de um pai-de-santo ou, pelo menos, a realização de catimbó reforçado em despacho com galinha preta, vela vermelha e farofa amarela. O prêmio valia o sacrifício. Em meio ao chororô e ao montão das ideias, prevaleceu a proposta da Novena - atividade que concretizava a receita de 'paciência e oração' aceita por todos.

- A Novena trouxe ele de volta - com os olhos marejados, toda feliz, apertando o seu querido num abraço extremado, a dona perguntou sobre como aquela ideia surgira.

- Foi uma coisa muito doida. Uma espécie de aviso. Do nada, talvez percebendo nossa angústia, a desconhecida interrompeu a caminhada que fazia com a irmã na pista de cooper e, como se estivesse a par do sofrimento geral, simplesmente disse: 'Ele vai voltar' e, comentando com outras pessoas, explicou que, para alcançar a graça, bastava oração e paciência. Foi o que fizemos.

Como dissera a desconhecida, a Novena deu certo. Sufocando o stress e a apreensão, estavam a fé e a esperança. Muita paciência e oração. Promessas foram feitas. Devoções foram testadas. Graças a Deus, todos ajudaram. Até o padre Arnaldo, confessor de Cândida, (a vizinha voluptuosa que, atraindo olhares gulosos dos marmanjos e despertando ciúmes das matronas invejosas, desfilava pela piscina com as carnes à mostra) ajudara. Naquele dia, suspendendo a orientação espiritual que, quase diariamente, prestava àquela ovelha desgarrada e necessitada, o padre compareceu à rodas de oração para conduzir os padre-nossos e ave-marias rezados com fervor, dando o impulso que faltava para o milagre.

Finalmente, o milagre aconteceu.

Depois de dias desaparecido, o cachorrinho reapareceu e a alegria voltou a reinar no condominio.

2. A FORÇA DO AMOR

- Ele vai voltar - a desconhecida, que, do nada, surgira na pista interna do condomínio, se intrometeu na conversa dela com a irmã e confidente. Sem parar a caminhada, a estranha insistiu - Não se preocupe, minha filha. Ele vai voltar.

Maristela sorriu. Aquele 'Ele vai voltar' era tudo o quê ela queria ouvir naquele momento.

Nos últimos dias, olheiras profundas, consciência pesada, olhos e nariz vermelhos de tanto chorar, arrependida até o último dos longos fios dos cabelos alourecidos que emolduravam-lhe a face bem tratada, Maristela não conseguia dormir e, de tão angustiada, já pensara até no suicidio. Se soubesse que suas aventuras juvenis chegariam aos ouvidos do marido Jesualdo e que ele, coberto de razão, sairia de casa decidido a não mais voltar, Maristela não teria cedido às tentações da carne. Não teria retornado à gandaia a qual estava entregue desde o fim do namoro com Mateus, seu primeiro amor ainda na puberdade, quando passou a manter as pernas sempre entreabertas, permanentemente pronta para uma saliência qualquer. Ela sabia que aquela vida desregrada não era bom exemplo para ninguém, mas, mesmo assim e já casada, não mudara o comportamento e, sempre que tinha a chance, dava suas escapadelas. Entre sorrisos maliciosos, conservando as linhas gerais de histórias enxertadas com detalhes picantes criados ou não pela liberdade poética, Maristela confidenciava à irmã namoricos e casos, inclusive com seu confessor, o padre Arnaldo, que, aderindo a um putanèe discreto, usufruia regularmente das suas delícias já há muito tempo. Como se o confessor fosse um troféu, Maristela comemorava como fizera a corte no padrezinho ainda imberbe, recem saído do Convento, exaltando seus hormônios de macho com a confissão detalhada dos próprios pecados, contando inclusive minúncias dos chifres que aplicava sem dó no marido Jesualdo (conhecido por todos como 'o descalcificado', porque, apesar de ser um velho corno, nunca tinham-lhe nascido chifres). E, assim, mesmo sabendo que pecava, Maristela dividia a vida, mantendo o recato em casa e exercendo a depravação lasciva da porta para fora.

Agora, desesperada e esperançosa, entrevendo através dos sons e das imagens criadas pelo devaneio, Maristela ouviu (ou imaginou ter ouvido) a desconhecida recomendar paciência e orações como receita infalível para 'ele voltar'. Pronto! Diante do inferno por ela vivido por aqueles dias, não havia o que pensar. Estava decidido. Daquele instante em diante, agiria como se jamais tivesse cometido qualquer deslize e desdenhando todas oportunidades para as farras que adorava, [Maristela] recolheu-se em orações e, confiando na força da mandinga indicada pela desconhecida, passou a esperar pelo milagre. Se tudo ocorresse conforme ela [a desconhecida] afirmara, Jesualdo perdoaria o seu fogo indomável, esqueceria a coroa de chifres que lhe ornava a cabeça e, como se o tempo tivesse retrocedido, recomeçariam do zero e, sem qualquer perturbação, poderiam viver a felicidade.

Aquilo era tudo o quê Maristela queria.

Mas as coisas não aconteceram como ela esperava.

De fato, enquanto, conservando a esperança, Maristela mantinha o regime de 'paciência e oração', o mundo girava criando as novidades que impulsionam a vida, num processo eventualmente diferente daquele desejado. E, assim, ao chegar em casa no dia seguinte, ao invés de um Jusualado renovado pelo amor, conforme prometera a desconhecida, [ela] encontrou a carta-despedida com o anúncio de que só voltariam a se falar através de advogados.

Dito e feito.

Ainda naquele dia, Maristela recebeu a fria correspondência de uma certa banca 'Lopes & Advogados Associados', convidando-a para a reunião na qual seriam tratados os termos da separação. O choque foi grande. De qualquer forma, sem ter como mudar a realidade, com as marcas do choro escondidas pela maquiagem e por um grande óculos escuros, Maristela se dirigiu ao tal escritório.

Maristela não sabia, mas, ali, sua vida começaria a mudar.

Depois da espera que, embora curta, a deixara ansiosa, Maristela foi conduzida à sala do advogado indicado para cuidar do seu divórcio. E tudo aconteceu. Antes que Maristela pudesse bater, como num passe de mágica ou cena previamente combinada, a porta foi aberta. E aí, criando a surpresa que jamais esqueceria, por trás da mão estendida para cumprimentá-la estava Mateus, seu primeiro namorado.

A reação dele foi de pura surpresa.

E um sorriso escancarado iluminou a face de ambos.

Num estalo, a tristeza de Maristela desapareceu.

Coisas do destino.

Aquele encontro era mágica pura.

Em poucos segundos, a entrevista profissional (que sequer chegara a começar) desapareceu e, ao invés de detalhes da separação, Maristela e Mateus conversavam como tinham sido ruins aqueles anos de separação. Ainda naquela semana, Maristela e Mateus estavam juntos, renovando o amor que parecia nunca ter acabado.

- Ele voltou - Maristela quase gritou à irmã, que ainda levou um tempão até perceber que Maristela não falava do marido Jesualdo e, sim de Mateus, seu primeiro namorado.

3. A REMISSÃO DOS PECADORES

- Ele vai voltar - de boca em boca, rapidamente, o Hagá de Telma correu o condomínio e, em menos de quinze minutos, era conhecido por todos.

A notícia gritada desde o jardim, pegou Cândida e o padre Arnaldo em plena função, interrompendo o pecado regular que cometiam à tarde, antes da missa das cinco, quando, sob a desculpa de visitar ovelhas distantes, o padre acalmava o furor da sua paroquiana favorita. Aquela safadeza tinha começado há tempos. Embora caído desde a época da diaconia, o padre Arnaldo sabia que, pelo menos daquele pecado, era inocente. Ele lembrava muito bem que, confrontado por Cândida, não teve como negar os sacramentos aplicados na sua vizinha [vizinha dela], a fogosa Maristela - fosse na sacristia da Matriz, fosse na pequena sala-santuário da casa dela no condomínio - e, para fugir do escândalo que o faria perder a confiança dos devotos, aceitara a chantagem. Desde então, com crescente entusiasmo, começara a apaziguar o furor de mais uma das suas paroquianas e, assim, reforçado por doses duplas de gemada com catuaba silvestre, pulando de cama em cama, sob a promessa de silêncio imorredouro, apacentava ovelhas e novilhas desgarradas. Tudo em nome de Deus, claro. Mas, agora, isso iria mudar.

- Ele vai voltar. Você não ouviu? Não podemos continuar essa safadeza desregrada - expulsando-o de dentro das suas carnes, Cândida cruzou as pernas e, por três vezes, riscou o sinal da cruz sobre o peito ainda descoberto.

- Besteira, irmã. Isto que fazemos é coisa de Deus - ainda sem perceber a grandiosidade do momento e completamente viciado no refrigério, o fornicário tentou contornar a situação, mas a paroquiana estava irredutível.

- O senhor não ouviu, padre Arnaldo? ELE VAI VOLTAR.

E, assim, Cândida - a paroquiana desgarrada que, como se não fosse casada, seduzira o padre Arnaldo, roubando-o da vizinha Maristela, para afundá-lo cada vez mais nos pecados da carne - se reconciliou com a pureza, interrompendo a longa vida de prazeres pecaminosos.

Só, então, com a imediata drenagem dos corpos cavernosos que o enchiam de vigor e pronto arrependimento da santa safadeza dos últimos anos, já vestindo a batina amarrotada, o padre tomou as mãozinhas de Cândida e, meio ensimesmado, com os olhos voltados para a vela que tantos pecados testemunhara, repetiu as palavras de Telma:

- Ele vai voltar.

Sem olhar para trás, o padre Arnaldo cruzou o umbral de saída da casa que, por muito tempo, servira de alcova para o desfrute e, todo paramentado, seguiu para a pequena multidão aglomerada perto da piscina para assumir o comando do Rosário milagroso.

- Ele vai voltar. Oremos - e já completamente redimido dos pecados da carne, jurando não mais voltar a cair em tentação, o padre Arnaldo fez a parte que lhe cabia.

4. A PASSEATA

Aquele era um momento especial.

Depois de muita procura, o grupo tinha, finalmente, encontrado um local apropriado para planejar e organizar a próxima viagem do ex-presidente ao Nordeste. Aquela viagem poderia ser decisiva para a campanha, pois, ao contrário daquilo imaginado pelos analistas políticos, objetivo do iminente périlo do ex presidente pela região não era manter a simpatia daqueles já simpáticos a ele, mas, sim, reduzir a resistência que sua candidatura enfrentava na classe média, especialmente junto aos Trimagasis e churebas. De fato, tendo em vista a importância estratégica daquela viagem, o planejamento precisava ser certeiro. Não podia errar na escolha do roteiro, dos temas dos discursos, precisava, enfim, fazer as coisas capazes de reduzir a rejeição da classe média ao nome do ex presidente. Aliás, esta foi a razão que levara o grupo a alugar uma casa exatamente ali - um condomínio de luxo, cuja fama era reunir a fina flor da Chureba regional.

Naquele fim-de-semana, cercado de gente granfina, evitando as camisas vermelhas do dia-dia, o grupo usaria o condomínio como campo experimental para o desenvolvimento de planos para a 'sedução' da classe média, sempre renitente às idéias avançadas. O grupo sabia que estava num 'campo minado', mas, mesmo assim, estava otimista. Havia razões para isso. Afinal de contas, como o ex-presidente aparecia no primeiro lugar de todas as pesquisas de intenção de voto, bem à frente de todos os candidatos, inclusive do atual presidente do país, mais cedo ou mais tarde, a sempre oportunista classe média tendia a aderir à onda vermelha.

O primeiro dia foi de observações e estudos. Enfurnado na casa confortável, vendo a alienação dos Trimagasis, o grupo se perguntava como despertar preocupações políticas e sociais nas churebas, foi quando aconteceu uma espécie de milagre, animando-o com um entusiasmo arrebatador.

- ELE VAI VOLTAR - o rumor vinha das bandas da piscina do condomínio,

De imediato, uma onda de alegria eletrizou o grupo. O grito uníssono entoado pela pequena multirão chureba indicava que, mais rápido do que o esperado, a classe média alta tinha começado a aderir.

- Ele vai voltar - O chamado corria de boca em boca e funcionou como estopim para grupo, que, arrebatado pelo entusiasmo, interrompeu os trabalhos e, surpreendendo a todos, saiu em passeata pela pista interna do condomínio.

- E-LE-VAI-VOLTAR. E-LE-VAI-VOLTAR! - cantado com o ritmo próprio das palavras-de-ordem, a frase proferida originalmente por Telma ganhou nova dimensão, reforçando a comoção que se espalhava por todo o condomínio.

POSFÁCIO

Naquele momento, ao tempo que o mundo girava segundo os pulsos e impulsos da vida, sem a menor ideia da confusão provocada no condomínio pelo seu Hagá na beira da piscina, Telma lembrava à irmã Vânia que estava na hora do seu jantar...

Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural