VELHO GUITARRISTA CEGO — PICASSO (1903)

VELHO GUITARRISTA CEGO — PICASSO (1903)

A SELVA DOS VERDES orgasmos, sem saber bem como sentir quando nela chegavam, carecia de ceder à submissão. Não Sabia ao certo se um lince, uma loba, um leão ou um velho guitarrista cego estava a impor nela uma vontade antecipada de cicatrização. Que nome alternativo poderia conceder a quem desejava lançá-la no mundo dos espíritos aflitivos, sobejos, abundantes que ela tinha de, por força da profissão mulher, encarar solidão, pobreza e a melancolia disfarçada em senhora dona de casa.

QUE CAMINHO ALTERNATIVO poderia ela trilhar, em sua ambição, não de bicho, mas gente, humana, sem cicatrizes dolorosas e tristes??? Ela mal entrara no reino dos espíritos plangentes. Devia a esse reino se adaptar. Suas percepções não deveriam torná-la uma criatura a quem a própria alma se apresentaria sem alternativa de altivez no árido caminho que haviam lhe imposto no mundo. Ela nascera. E havia descoberto isso.

NO MEIO DESSE CAMINHO haveria de descobrir que perdera a estrada onde o horizonte da utopia própria cederia às vias vicinais que não desejaria seguir. Mas a trilha de cada destinação humana não tinha seu próprio aferir. Sua própria escolha. Quanto medo haveria de superar na descoberta de seu próprio exílio, de seu próprio ermo. Quantas amargas sensações de morte. Tinha de saber fazer delas uma sensação de sorte. Um estado de espírito que lhe fizesse companhia e não a abandonasse a inquietude abjeta da prostração, à qual estaria sujeita à inquietude constante da voragem ofegante de cada programa, de cada amante que nela penetrasse. Mas, agora descobria-se mãe.

NÃO PODERIA SUA FORÇA dominante ceder lugar ao risco não distante que poderia fazê-la afogar no oceano da melancolia. Não queria ser fugitiva de si mesma. Desejava honrar sua privada dignidade. Fazer do corpo lasso, após a escória do orgasmo disseminar-se nela, não se permitir sentir-se numa descida incerta, mas redescobrir-se a cada passo, leve e ligeira, a recuperar a felina redescoberta.

EM CADA PRINCÍPIO SOLAR matutino, eis que o sentido do divino não pudesse abandonar sua crença de que deveria afirmar nela a estrela guia do amor divino, das coisas belas e sadias que fariam a alegria de seu viver. Que as feras ficassem com suas noções e discernimentos que a ela não se grudassem em estações amarelas em seu discernimento de moça não mais donzela. Ainda que fosse apenas para ela, que vencesse o leão e a raivosa fome de que em ambição consome-se em aflições que não a constrangessem e turvassem para sempre sua vista, sua esperança, suas conquistas.

NÃO DESEJAVA PARA SI UMA mente na qual só lástimas e vagidos existissem. Diante de seus olhos ela saberia que não era apenas uma fenda, um buraco, onde os fracos penetrariam na intenção de anular nela sua fortaleza para sentirem-se fortes. Não queria ser deles uma sombra, uma agachada louvaminheira, submissa em favor de lisonjas à pessoas prósperas e influentes, mas tão pouco civilizadas.

SEUS SENTIMENTOS DE autoestima não eram viciosos, dissimulados nem bastardos. Precisava permanecer altiva em seus anseios. Não baixar a cabeça em vergonhosa fronte. Não teria por mestre as feras em contraponto às suas necessidades de sobrevivência. Suas carências não destruiriam o amor-próprio que se devia a si mesma. Não fariam ela tremer as pernas nas viagens selvagens que deveriam ter. Direções e trâmites de dominação escravagista. Não a fariam morrer antecipadamente ao tornar sua natureza perversa e fria.

QUEM PODERIA PREVER que na terra dinheiro ela não se rendesse às tábuas de galinheiro que não se saciam dos préstimos e cortejos de fêmeas, como se elas quisessem obter apenas a mortal renovada virgindade para nela expelir a malícia tóxica e a perversidade. Nesse sítio de agonia eterna, para ela, a peçonha, não abriria as pernas para que, simplesmente, fosse fazer ficar contentes os que imperam lá, sua rebeldia de ressentimentos e leis de tormentos dos que se querem senhores de toda sociedade, irmandade e grei.

PARA QUE SE SINTAM FELIZES, semeiam o desalento nas mulheres que se vestem para os bailes virulentos, nos quais invocam a insegurança sibilante do ofídio demoníaco e manifesto no arco telúrico do luar oferecido na fresta entrepernas que a eles se oferecem. Quem poderia ir em auxílio dela, senão ela mesma e suas adentradas, inseridas e hospitalares bactérias???

COMO PODERIA ELA SE RESGATAR dos homens, dos velhos insidiosos da flauta, da serpente e da guitarra física e espiritualmente devoradora da presença das leis do Senhor. Preservar sua decência sem dor??? Se ficasse ela sujeita às suas vontades carnais e diabólicas por natureza??? Nessa sociedade a mulher já nasce no estado probatório de preparação para a sedução deles, em virtude da condição decaída descrita no princípio da Árvore do Paraíso.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 29/10/2022
Reeditado em 08/12/2022
Código do texto: T7638128
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