JAQUELINE DE MÃOS CRUZADAS — PICASSO (1954)

JAQUELINE DE MÃOS CRUZADAS — PICASSO (1954)

UMA VEZ cordialmente expulso da casa do tio em Niterói, passei a, num primeiro momento, sob a influência da amizade de meu avô paterno, com o advogado e administrador do jornal O Fluminense, Alberto Torres, que me sugeriu falar com seu genro e superintendente da empresa, Ephrem Amora. Consegui que me autorizasse a escrever uma coluna de cinema de uma lauda e meia, diariamente. Nos finais de semana, página inteira.

NA ÉPOCA o país fervilhava de inovações em todos os setores e instâncias populares da sociedade. Tudo tinha a alcunha e o slogan “Novo”. Novo isso, Novo aquilo, Novo talco, Novo batom, Nova calcinha, Nova sandália, Novas drogas, Nova pizzaria, Novos jornais nanicos, Novos instrumentos de tortura da ditadura, Cinema Novo, Novo Cinema Marginal, Novo cigarro, Novas bandas de rock: A sociedade se disfarçava por trás de novas novidades, mais velhas que as velharias de museus nas penitenciárias.

NOVOS CANTORES, novas práticas sexuais mais antigas do que os Hititas. A juventude buscava desafogar-se do fundo do mar das iniquidades familiares. A mocidade buscava uma independência até então reprimida e estimulada por pais que não sabia de mais nada, exceto que deveriam fazer de tudo para manter seus filhos sob a batuta de uma orquestra de fantasmas que, em vida, estavam sendo precocemente jogados nas covas de um tempo no qual não mais poderiam agenciar suas influências deletérias. Havia, na real, um mundo novo a surgir por detrás dos fantasmas das velharias: a cultura e a tecnologia multiplicavam as antigas imagens da civilização e sociedades, as mais antigas, nos novíssimos padrões de reprodução de antiguidades nos celulares novíssimos.

NÃO QUE AS novas influências também não fossem doentias e mórbidas. Eram sim. A tampa da panela de pressão dos instintos represados a tanto tempo, abriu-se com um espetacular e fantástico redemoinhar de estranhos jovens no ninho de uma sociedade da propaganda consumista de Novos carros, Novos eletrodomésticos, Novas motocicletas, Nova gasolina aditivada, Nova banda de rock. Novos postos antigos de gasolina.

OS BEATLES faziam a cabeça da juventude. Os Beatles e as bandas que se seguiram nas paradas de sucesso do rádio e na TV, em busca de qualquer motivação musical que pudesse ajudá-la, à Novidade, a se desapegar de seus carcereiros da família tradicional, conservadora, maquiavélica, mórbida. Sem mais tanto poder de influência. Exceto nas sinecuras familiares da tradição mais suburbana no interior do país de interior: Brasil.

OS CONCURSOS públicos pululavam, os cursinhos pré-vestibulares se materializavam em todos os cantos e recantos dos bairros centrais e periféricos. Os Beatles e o macaqueado dos Rolling Stones, eram vistos e ouvidos, divulgados em todas as emissoras de rádio cantando, principalmente, “Hey Jude”. Gal Costa a Janis Joplin brasileira, cantava numa intensidade de arrepiar:

— “Vá, se mande, junte tudo que você puder levar/Tudo que parece seu/É bom que agarre já/Seu filho feito louco/Ficou só/Chorando feito fogo/À luz do sol/Os alquimistas já estão no corredor/E não tem mais nada negro amor. — A estrada é pra você/O jogo e a indecência/Junto tudo que você conseguiu/Por coincidência. — E o pintor de rua que anda só/Desenha maluquice em seu lençol/Sob seus pés o céu também rachou/E não tem mais nada negro amor. — Seus marinheiros mareados abandonam o mar/Seus guerreiros desarmados/não vão mais lutar. — Seu namorado já vai dando o fora/Levando os cobertores, e agora/Até o tapete sem você voou/E não tem mais nada negro amor.

QUEM VIVEU aqueles dias de opressão, sabe mais que o normal das pessoas, o que significam estes versos de Bob Dylan traduzidos na voz da Janis Joplin nacional: Gal Sensacional: — As pedras do caminho/Deixe para trás/Esqueça os mortos/Eles não levantam mais/O vagabundo esmola pelas ruas/Vestindo a mesma roupa que foi sua. — Risque outro fósforo, outra vida/Outra luz outra cor/E não tem mais nada negro amor.

ENQUANTO TUDO isso acontecia simultaneamente ao sadismo de perseguidores e torturadores das FFAA, seus subordinados acossavam brasileiros presos, supliciados pelos oficiais armados da ditadura militar. Torturadores sádicos que ainda hoje são lisonjeados por personagens psicóticos, tipo o Bozo na presidência da República, a elogiar, incansável, o sadismo elementar de Carlos Alberto Brilhante Ustra, vulgo “doutor Tibiriçá”. Na linguagem dos indígenas guaianás que habitavam o Planalto Paulista quando da chegada dos portugueses, Tibiriçá queria dizer “Vigilante da Terra” ou “Sentinela da Serra”. Ele vigiava a dor dos torturados. Dor que alimentava seus orgasmos de psicopata do totalitarismo.

ERA NESSA incrível confluência de influências as mais diversas que eu, vindo do interior do país, estava em busca de me sociabilizar em pleno Hades urbano da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. Aprendia, por iniciativa própria, na universidade da cultura popular em livros de Máximo Gorki, Anton Tchekhov, Dostoievski, George Orwell. Eu vivia a realidade da “revolução dos bichos e bichas”.

EU NÃO ME achava na obrigação de estar nem de um lado nem do outro. Eu estava a navegar sobre o Estige, sobre as águas do rio da invulnerabilidade, em meu barco. No barco não tão trôpego de meu Inconsciente Pessoal. Os rios do Tártaro são muitos. Mas, sabemos, nem mesmo os deuses podem quebrar uma promessa feita por um navegante do rio Estige. Tal promessa é o voto mais sagrado que pode ser realizado por um humano.

DENTRE OS livros que li na época, mais me sensibilizou “O Macaco E A Essência”, editado dezesseis anos depois do “Admirável Mundo Novo”: ele disserta sobre o papel social da maternidade num mundo pós-conflito nuclear, no cotidiano de uma sociedade devastada. As mulheres são apropriadamente definidas no que diz respeito à maternidade. A mim parece que nunca houve uma definição mais congruente do papel da mulher na sociedade da procriação ou geração de filhos. O mito da “Mãe” nele, “O Macaco E A Essência”, é perfeitamente desconstruído.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 29/10/2022
Reeditado em 19/11/2022
Código do texto: T7638176
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