CAPITULO 01 : UMA CRENÇA

Tratando-se de um tempo em que os povos que vivem sobre estas terras dispõem de tão poucos recursos para domar a natureza, é compreensível que eles nem sempre a vejam como uma mãe carinhosa. Pois isso não é possível. Já que ela só lhes obriga a uma dura relação de força; onde os homens ou se impõem ou se submetem aos duros termos determinados pela mata.

Como, aliás, parece ser a lógica de toda a vida em geral: meramente vencer ou ser vencido. Nada mais do que isso. Por mais que queiramos negar este fato a nós mesmos o tempo todo. O que, de qualquer forma, não muda a realidade. Que, ao fim, tudo se faz apenas uma eterna competição.

E que, por vezes, nos perguntamos qual seria o sentido disso tudo. Sem nunca obtermos uma resposta. Ou, ao menos, não uma resposta satisfatória, de modo que a pergunta não torne sempre a se repetir. Por mais que haja sempre a crença ilusória de que algo olha para nós com maior zelo do que aos demais seres.

É isso que reflete um sábio veterano de nome Maçaranduba, um bravo que muito viu e viveu e por isso agora se pergunta olhando para um de seus netos:

_Por que este mundo não pode ser diferente? Por que não?

Um lamentar vindo de um homem cansado, cujo rosto moreno tomado de algumas rugas, atesta bem toda uma sucessão de lutas. Que não só ele, como toda a sua tribo sempre enfrentou com coragem. Como é próprio desses homens extraordinários que muito já conseguiram a despeito de todas as suas tão poucas condições para isso.

Pois apesar de toda a sua fibra, toda a sua bravura e empenho, esses rústicos desbravadores a gerações se deparam com um desafio de proporções descomunais. Nada menos que domar uma natureza selvagem, dispondo tão só de alguns mínimos recursos adequados. Uma vez que tudo que sabem, eles descobriram por si só e isso os torna incríveis, admiráveis. O que, contudo, não faz de suas vidas um paraíso.

Como, aliás, acontece a toda e qualquer sociedade que é todo condicionada pela boa vontade desta mesma natureza que, de tempos em tempos, faz questão de mostrar a todos a sua soberania. Dependendo que ela mande as chuvas, dependendo que ela mantenha longe os perigos diversos, contando esses indígenas com poucos meios para se impor.

Como, por exemplo, tendo apenas ferramentas de pedra, de pouquíssima eficiência para abrirem a mata. O que, por isso, lhes obriga a apelarem para incêndios que eles não têm como controlar. Poucos artifícios dos quais nunca podem abrir mão. Até porque a floresta seleciona só aos mais fortes sobreviverem nela. E ainda assim somente por um dado tempo e nada mais.

Pois como sua agricultura pouco produz, também dependem dos animais e vegetais que dispostos por essa mesma natureza até eles começarem a se esgotar, tanto quanto o solo. Então os forçando a irem em busca de novos pousos mais aprazíveis. Uma ordem que estes indígenas não titubeiam e a acatam com determinação, fibra e até mesmo esperança.

A despeito do constante testar sobre eles. Como as doenças próprias da mata fechada e quente onde eles vivem. Momentos de estiagem e de cheias que só dificultam ainda mais sua subsistência. Fragilidades, fragilidades. Pelas quais, consequentemente, esses indígenas se obrigam a clamar, constantemente pela misericórdia de seus deuses, que, ao que parece eles nem sempre os escutam.

São todos esses pensares que o velho veterano com seu neto ao colo pensa e repensa. O afagando com um misto de afeto e apreensão. Ansioso por uma nova esperança qualquer:

_Vocês que agora estão vindo, merecem algo melhor. _suspira melancólico este ancião, olhando com ternura ao seu neto que, em seguida, lhe retribuí com um sorriso.

E por isso que este bravo, em dado momento, após muito pensar, lhe diz com determinação, como se fizesse uma promessa:

_Não mais irei me iludir. Tenha certeza meu neto. Não tenho mais tempo para isso.

Desabafo que a criança não entende e por isso lhe pede que lhe explique melhor, mas ele se limita a dizer agora simplesmente que:

_Se queremos dias melhores devemos nós o criar em vez de esperar. Devemos agir e não só obedecer, acatar.

Palavras que ele enfim admitia até mesmo para si. Finalmente aceitando como o rigor da natureza mostra muito bem como o ser humano é fraco. Por isso que os homens tanto criam ilusões sobre serem algo muito maior do que realmente o são.

Motivo pelo qual o ser humano tanto se justifica como sendo a criação preferida de forças invisíveis, em detrimento de todos os demais seres vivos. Uma ilusão que, todavia, de tanto a crer, ela ao fim acaba lhe fortalecendo. Sim, ela lhe dá forças para ousar no que ele se sentindo só se acovarda, se intima.

Entretanto, por mais que não se possa negar que a vida é uma constante luta pela sobrevivência, também não se pode negar que essa mesma natureza apesar de todo o seu rigor, lhes é, acima de tudo, uma mãe. Extremamente severa, mas que também ama. Que oferece benesses tanto quanto impõe provações. Ou ao menos, é isso o que Maçaranduba quer acreditar de todo o seu coração.

Bastando ver a esse magnifico trecho de floresta Atlântica, localizado entre o Pico das Almas e a Enseada do Camamu , onde o povo deste bravo Maçaranduba tem vivido por anos afim. Capaz de encantar tanto como de intimidar a qualquer aventureiro. Pela grandiosidade e beleza deste vale repleto de rios cristalinos, solo generoso fértil (a despeito de não o saberem aproveitar satisfatoriamente) e dotado de uma variedade incalculável de frutos e outras maravilhas.

Uma cativante beleza, ainda indomável e que, por isso, também é um inferno verde; onde o caçador pode se tornar caça num mero descuido. Onde nunca é demais frisar que a doença pode vir sorrateiramente dos mais diversos insetos ou mesmo da água. E que, como se não bastasse, lhes condiciona à constante competição pelos seus recursos que, infelizmente, não têm como serem repartidos entre todos.

Principalmente porque lá, não muito depois das grandes serras, a vastidão verde logo cede lugar ao cruel semiárido, escasso em tudo que esta outra terra abunda. Destino aos que acabam sendo os mais fracos nesta competição por essa limitada faixa verdejante que recobre os mares.

Por isso também tantas guerras entre eles. Por isso, inclusive que a este local eles se referem como o Vale da Dor. Acontecendo que a guerra da qual eles se orgulham tanto, agora os exauria. Tanto à sua gente, os atuais detentores destas terras, os chamados taxanauas; como aos que eles se referem meramente pela alcunha de tapuias.

E a quem não saiba, os primeiros se fazem uma das inúmeras tribos tupinambás (uma vasta família de populações variadas, apesar de em geral terem todas elas uma mesma língua e costumes) que pouco a pouco dominam a maior parte dos litorais desta terra que um dia irá se chamar Brasil. Já os segundos nada mais são do que todos os demais que diferem destes outros. E, como já disse, eu repito: nada mais. Apenas isso.

O que já é suficiente para um tupinambá se referir ao que não é igual a ele meramente por tapuia, palavra que em sua língua quer dizer simplesmente selvagem. Pois é! A esses soberbos tupinambás, todos, absolutamente todos, que não tem um modo de vida igual ao deles é simplesmente inferior e pronto. E por quê?

Simples: porque qualquer tupinambá se acha superior a todos os demais e nada mais. Ele se vê como o padrão ideal. E usa isso como desculpa para ter mais direitos que os outros. Impõe-se em nome desta diferença que usa meramente como pretexto para submeter aos são diferentes deles.

Como, aliás, ao longo dos tempos, sempre se fazem aqueles que se sobressaem pela força bruta, igualmente criarem alegações de superioridade. Todos os grandes impérios na história da humanidade assim se formaram. Por mais que esses tupinambás por ora formam apenas a uma cultura que cada vez mais se espalha por todos os litorais desta gigantesca costa.

Por mais que eles se alastrem sem pudores, se justificando sempre serem mais merecedores que os demais povos, eles ainda não formam uma nenhuma unidade. Muito pelo contrário. Constantemente, conforme crescem suas comunidades, elas se fragmentam em novos grupos. Não raro hostis entre si, na competição pelos parcos recursos. Razão pela qual esses taxanauas, além dos tapuias, têm por inimigas várias tribos “irmãs”. Tais quais os caetés e a os tupinaés, que compartilham mesma língua e hábitos e que, por isso, dependendo das conveniências também podem se reconciliar.

Já que relações políticas são sempre relações políticas. Ou seja, interesses disfarçados por outras alegações. Como se via agora com a criança ali ao lado de seu avô, agora se exaltando para ele.

_Nosso valor se deve por sermos os descendentes direitos do grande deus criador, nosso avô sagrado, o Grande Avô! _brada com ânimo este menino afim de alegrar também ao seu tão amado parente.

No caso este jovem de pele morena, corpo delgado e grande entusiasmo se referia a crença deles de que todos os homens descendem do filho próprio deus criador de tudo que existe. Sendo, ainda de acordo com suas crenças, eles, os tupinambás os netos favoritos deste grande avô celestial. Um crer que este veterano de cabelos grisalhos e olhos negros, já não tem tanta certeza, como se pode notar em sua resposta seguida:

_Talvez...

Uma vez que ele não quer mais tanto se apegar às promessas fantásticas, mágicas propagadas pela fé. Absurdamente impossíveis e, ironicamente, justamente por isso, tão sedutoras. Tão cativantes aos espíritos que querem somente crer que alguma mudança, a qualquer momento, se fará em suas existências. Sem se importarem com preço disso, como é o caso da chamada Terra onde não se morria.

Exatamente. Um local onde não mais se morre. Um suposto território mágico onde além de serem agraciados com a imortalidade, jovialidade e saúde, eles não conheceriam mais a fome, o maior drama dos povos nômades.

Todavia, como sempre acontece a todas as promessas fantásticas das crenças religiosas, não há nenhuma indicação exata de como encontrar este lugar. E para justificar o fracasso em sua busca, se cria então a vaga desculpa de que esse lugar mágico é acessível somente aos mais nobres que talvez um dia venham a lhe encontrar. Talvez.

E que, deste modo, gerações após gerações, incontáveis populações tupis, nos mais diversos cantos deste verdadeiro continente, de tempos em tempos, se colocam a vagar aleatoriamente pelas mais diversas direções em busca deste sonho. Tanto que foi assim que os taxanauas se estabeleceram neste Vale da Dor há umas poucas gerações.

Quando, em vista de todos os sacrifícios deste deslocamento sem rumo certo, ali se acomodaram. Como todos, cedo ou tarde o fazem até uma nova crise os levar a recomeçar essa busca fantástica mais uma vez. Num ciclo constante, do qual nem todos sobrevivem. Não mesmo. Já que não é difícil que essas comunidades de migrantes acabem massacradas por outros povos ou desgraças naturais.

Mas para tudo isso recomeçar é preciso um guia divino. Que, não precisa ser apenas para comandar a essa tão dura busca. Tanto que muitos desses taxanauas atualmente já se apoiam num herói que acreditam já haver entre eles. Mesmo não sabendo ainda o que se esperar dele. Mas enfim... Seu nome é Apoçub (o Visitador de Gente). Seu mérito: primeiramente ter nascido num tempo de ampla histeria por essas guerras. O que levou um jovem pajé a crer que essa criança então seria um grande enviado dos deuses a salvar todos eles. Basicamente isso e nada mais.

Luis Marcelo Santos
Enviado por Luis Marcelo Santos em 13/03/2023
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