A ampulheta quebrada capítulo 1

 

CAPÍTULO 1

 

(VIDE A INTRODUÇÃO DIA 24/4)

 

 

A DESCOBERTA DA AMPULHETA

 

 

Orpanto estava acostumado com as decisões de Lotar, que via de regra não necessitavam de longo amadurecimento como vinho em barris. Lotar tomava resoluções rápidas como a corrida de um papa-léguas do deserto de Ismir. Viajar até Bolônia? E por que não? Afinal a distância era de poucas léguas, que facilmente podiam ser vencidas pelo conversível elétrico do detetive. Lotar deu as suas instruções à criadagem, com especial ênfase no cuidado com os muitos animais de estimação – gatos olhudos, corujas canoras, o cão-lontra Elesbão e os pôneis. Principalmente o pônei Ligeirinho, xodó do dono da casa. Os visitantes tinham retornado ao castelo no dia anterior, pelo trem noturno. Orpanto nutria uma íntima preocupação, ainda que o pessoal dos Centros de Valorização da Vida, aos quais ele pertencera no passado, dissessem que as pessoas não deviam se preocupar, mas apenas se ocupar das coisas. Ele não conseguia tal desprendimento, e num caso como aquele preocupava-se com os policiais que iriam encontrar pela frente, pois tais indivíduos nem sempre demonstravam boa vontade para com as atividades cerebral-detetivescas de Lotar. E preocupava-se também com a temível Irmandade da Sombra Persistente, cujos membros haveriam de estar possessos pelo assassinato de seu par.

Depois de dar as últimas instruções ao mordomo Elesponto, Lotar Camarral retirou o carro da garagem e aguardou que Orpanto Ologumes trouxesse a matalotagem. Lotar sempre se prevenia bem em suas viagens.

Orpanto colocou os volumes, inclusive de livros, na mala do carro, e acomodou-se no assento de motorista. Não parecia muito empolgado com a viagem:

—Você crê que esse caso será fácil, Lotar?

— Nenhum caso é fácil, como eu costumo dizer...

— Mas será difícil além da média?

— Acho que sim. A não ser que o culpado seja o rei anão, que tenha morto o mago para ficar com o banquete todo de graça...

Orpanto riu discretamente.

— Anões seriam capazes disso. É uma raça muito egoísta.

— Orpanto, controle os seus preconceitos... conheci anões excelentes.

— Eles são tão desconfiados e agressivos...

— São bons guerreiros, é claro. E não se dão muito bem com elfos. Mas a minha sugestão foi mera brincadeira. Tem alguma coisa muito sinistra por trás disso.

— E se... — especulou Orpanto — esse mago estivesse criando um homúnculo e foi morto por ele?

— Nem pense nisso. Homúnculos, se realmente existem, não poderiam quebrar o encanto da espada.

— Mas Lotar, mágicos não se utilizam de espadas! Eles apenas as fabricam, esqueceu disso?

— Eu sei, mas regras costumam ter exceções. E se esse mago maluco queria usar uma espada?

— Infelizmente já não poderemos perguntar isso a ele.

— Ele deve ter deixado anotações. Bem, veremos isso em breve.

Orpanto passou a se concentrar na estrada, que subia num aclive íngreme. Havia curvas e às vezes passavam comboios volumosos de transporte de mercadorias, e era perigoso descuidar do volante.

Mas afinal chegaram a Bolônia, aquele curioso principado que ocupava uma pequena península que avançava pelo Cabo do Desespero. O castelo de festas situava-se num promontório que avançava mar adentro e era muito famoso. Orpanto, sujeito meio atarracado e de bigodes, e mais velho que Lotar, bocejou. Já estava cansado da missão antes de começar, Lotar porém tinha o ânimo de um adolescente.

O Castelo Iguatemi era multicolorido, suas paredes externas e torres apresentavam cores diversas, sem dúvida para chamar atenção. Era cercado por jardins murados e naquela manhã os portões estava fechados por força das circunstâncias. Orpanto mostrou as credenciais a uma sentinela e a entrada foi franqueada, pois já eram esperados.

Estacionaram no pátio em frente à portaria e vários cachorros que por lá passeavam latiram alegremente. Lotar saiu do veículo, acariciou seus cabelos pretos engomados e olhou em volta. Antes porém que ele e Orpanto Ologumes dessem os primeiros passos em direção à portaria de lá saiu a elfa, correndo na direção deles, parecendo muito agitada.

— Descobri uma coisa grave, Lotar! Muito séria mesmo!

— Como assim, Ariel? Já está passando à minha frente?

Lotar era um sujeito bem-humorado, mas Ariel ignorou seu humor:

— Descobri porque ele pôde ser morto por aquela espada.

— Fale então, vamos ver se eu concordo.

— Aquela não é a espada do Ártemis Olovino! É uma réplica! A verdadeira espada do mago desapareceu! Quem o matou deve ter levado!

Lotar realmente se sobressaltou:

— Mas você tem certeza disso?

— Sim, é claro. A espada que ficou não tem magia!

— Você tem certeza disso? — indagou Orpanto, sem muita imaginação.

— Mas é claro! Consegui examinar a arma e não senti magia alguma. Mostrei ao delegado que o selo de Ártemis foi falsificado.

— Isso muda toda a questão e explica como ele pôde ser morto, pois não era a sua katana. Vamos logo ao local, o homem tem que ser enterrado afinal de contas!

O mágico havia sido encontrado na biblioteca local, caído entre duas estantes. Ardósio, homem muito alto e muito magro, estava lá com outros detetives e apertou a mão de Lotar e a de Orpanto. Mas fez isso de forma muito casual e fria, como se no fundo não apreciasse a presença daqueles dois.

— Podem olhar de perto mas não toquem no corpo por enquanto — observou.

— E a espada?

— Foi retirada pelo Dr, Lacustre. Já foi submetida a testes, mas não apresenta impressões digitais.

— Ariel está certa? A espada é falsa?

— Por enquanto é a palavra dela, mas eu também acredito. Seria provavelmente impossível matar esse mago com sua própria arma, sabemos disso.

— Bem... encontraram alguma pista, alguma coisa que chame a atenção?

— Apenas uma ampulheta, cujo vidro foi quebrado e a areia derramada. Ou houve luta, mas não encontramos outros indícios significativos, ou foi uma tentativa de indicar a hora exata do crime... ela tem impressões de Ártemis.

— Isto é deveras interessante, delegado. Posso ver esse objeto?

— Pois claro. Pusemos sobre aquela mesa.

Apontou uma grande mesa de mogno escuro, onde se espalhavam alguns livros de capa dura, e a ampulheta sobre uma bandeja. Lotar refletiu rapidamente: marcar a hora? Como, se a areia fôra em parte derramada no chão? Mas então ele reparou que a parte de cima encontrava-se intacta.

— Delegado, ela foi encontrada deitada, não é isso?

— Isso mesmo, e eu mesmo a peguei com um lenço e a depositei aqui sem erguê-la, acredito que a quantidade de areia no topo continua a mesma. Se pudéssemos identificar a hora exata em que foi posta no início do derramamento acharíamos a hora da agressão.

— O senhor quer dizer a hora em que ela foi posta deitada no chão...

— É claro.

— Isso é deveras interessante, Delegado. Vamos ver se terá importância na elucidação desse caso.

 

continua...

 

imagem pixabay

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 28/05/2023
Reeditado em 29/05/2023
Código do texto: T7799808
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