Eça não era de Queirós...

Não é pequeno o quintal da casa de mamãe. De um lote original de menos de 300 metros quadrados, em 1958, foi sendo adicionado ao longo dos anos, com frações aqui e ali e chega hoje a produzir uma boa quantidade de frutas, sobretudo bananas, que ao cabo de um ano, juntado aos ovos de galinha nele colhidos, dá quase para pagar a primeira parcela do IPTU...

Mas nos assegura uma boa dose de privacidade em meio ao burburinho da cidade. Uma curiosidade que guardamos como um tesouro: a parte mais ampla do fundo do quintal pertenceu a um senhor Joaquim Queirós, que nos foi cedida pela filha herdeira, há coisa de quase meio século. Um neto de Joaquim, Bartolomeu Campos Queirós, foi trazido para passar um tempo com seu avô, assim que perdeu a mãe, em Papagaios, cidade que dista uns 40 kms de Pitangui. Como Bartolomeu era de 1944, minha suposição é de que o tempo passado com seu avô

terá sido durante a primeira metade da década dos 50, e portanto, antes de nossa chegada aqui, que foi em 1958, vindos do povoado do Brumado, a uma légua de Pitangui.

Destarte, se não chegamos a ser contemporâneos do menino Bartô, tivemos a graça de herdar uma boa parte do quintal onde ele há de ter feito suas artes e aventuras, e vai ver até que, mesmo tendo sido um garoto bem comportado, dalguma forma, de sua adubagem orgânica, não se descuidado...

Foi da passagem do órfão Bartô por Pitangui, que nasceu sua obra, agora a literária, seminal, eu diria, Por parte de Pai, onde a figura central é justamente o avô, homem que cronicava a vida da cidade por meio de suas observaçôes sagazes, escritas a lápis de carpinteiro, em letra bonita, nas paredes de sua própria casa, de frente voltada para a emblemática rua da Paciência, que teve o seu calçamento de pés-de-moleque coberto por asfalto, e virou Visconde do Rio Branco...Coisas da modernidade...

Mas o que eu queria falar é de outro lado do fundo do quintal: metido no isolamento imposto pelo risco de pegar corona-vírus, ouvi numa radiosa manhã, o que me parecia uma oração fervorosa e langorosa, no que me parecia ser uma emissão de rádio. Em meio à vegetação densa, sem ser notado, aproximei-me da cerca de fundo e vi que não provinha de onda de rádio a bem articulada prece que ouvia, mas sim, da boca e da alma de um vizinho, um senhor de seus cinquenta e tantos anos que invocava a proteção do Senhor. Não tropeçava numa vírgula sequer, tal a fluidez de seu clamor ao Altíssimo. E enquanto monologava da parte dos fundos de sua casa, se exercitava, em compasso numa dessas esteiras das quais emerge um par de hastes para dar segurança ao ginasta, numa perfeita sincronização, entre passos, movimento dos braços, e modulação oral.

Minha curiosidade levou-me ao mais próximo possível da cerca de tela, mas não fui visto na minha espionagem, senão pelo Senhor, que por vezes renego, mas que, onipresente, onisciente e onipotente não deixou de dar-me um castigo, duplo aliás, por meu ato de bisbilhotagem: como eu estava de bermudas, mosquitinhos-pólvora salpicaram minhas pernas de bolhas, sem querer saber de minha alergia por picadas, e para completar, eu que usava alpargatas voltei com uma delas atolada em catingosa jaca...Essa, eu podia jurar, e abjurar, cá entre nós: eca, Eça não era de Queirós...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 31/03/2020
Reeditado em 31/03/2020
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