SER QUEM SE É

E era quando mais abusava da solidão de mundo, era nessa hora que me sentia plena de mim mesma. Era quando as horas passavam arrastadas, e a minha companhia me fazia bem e não causava aquele cansaço existencial miserável e egoísta, era nessa hora que costumava ser quem quisesse. E nessa ânsia e mania de ser quem eu quisesse, por essa mania marcada e rabugenta é que já fui de tudo nessa vida. Já fui o mendigo da esquina, a bailarina do municipal, o atendente da lanchonete e a puta gostosona da Augusta. Já fui o malandro e também a mulher dele. Já fui o desertor, e já fui o herói. Já fui a Maria, e depois o João, e houve época em que fui os dois, com seus papéis misturados. Fui o padre e fui o pecador. Já fui o jogador que erra o pênalti na final do campeonato, e fui muitas vezes o torcedor fanático. Já fui a regra, mas todos os dias sou um pouco da exceção. Já fui a doença mortal, e já fui a cura milagrosa. Já fui deus, e também o diabo. Já fui a escrita, hoje sou apenas uma sombra dela.

Mas foi quando mais abusei da minha solidão, foi nessa hora que me senti plena do mundo. Foi quando as horas correram mais do que o normal, e a minha companhia já não me fazia tão bem e eu me senti cansada, miseravelmente cansada, foi nessa hora que me arrependi de ser quem eu quisesse. E na ânsia e mania de deixar de ser quem eu quisesse, por essa mania pretensiosa e enjoada é que desisti de ser de tudo nessa vida. Fiquei apenas com o meu papel, o meu próprio, que por si só já me dá muito trabalho, e prazer, em desempenhá-lo...

São Paulo, 6 de Julho de 2008.

Bruna Pattiê
Enviado por Bruna Pattiê em 11/07/2008
Código do texto: T1075443
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