ESPÍRITO LIVRE

Um espírito livre cutuca, machuca, assusta e causa mal estar. Não somente a ele mesmo, mas a todos que o cercam. É uma espécie de paladino da liberdade, a qual, inclusive, estará eternamente preso. Paradoxal, mas faz sentido – como tudo na vida... Tem sido difícil conviver com um desses ao meu lado. Todos os dias, quando acordo, ele está lá, olhando para a minha cara, e zombando do quanto eu poderia estar tão livre quanto ele. Me alerta para o fato de que a vida voa, e que precisamos nós fazermos dela alguma coisa, antes que a mesma tome as rédeas e se transforme em nossa própria algoz. E eu lhe digo sempre, e com muita paciência, que sei o quanto posso ser livre e que até sou em alguns momentos, mas o fato de viver exatamente nesse mundo que conhecemos bem me obriga a agir, muitas vezes, contrariamente à minha natureza – que seria a de correr solta pela vida, simplesmente vivendo a melhor existência que pudesse dar a mim mesma.

Todos os dias quando saio para trabalhar deixo o espírito livre em casa, sozinho. Eu sei que nesse momento ele exerce a sua solidão preferida, que não por acaso é também a minha. E também faço idéia do quanto é salutar para ele essa solidão que só os mais livres podem alcançar: a solidão de si mesmo. Porém, apesar de saber do seu gosto pela solidão, tenho a impressão de que ele guarda para si o seu melhor momento. E como uma criança espera ansiosa pelo clímax da sua brincadeira, o espírito igualmente se prepara para o seu clímax: o encontro consigo próprio. Ensaia falas, gestos e expressões que quase sempre o denunciam antes mesmo do tão esperado acontecimento, pois o espírito livre é, antes de tudo, um ansioso por natureza. Por ser livre sabe que as oportunidades são efêmeras, os momentos são efêmeros, e que tudo na vida passa, de um jeito ou de outro. Nada é imutável. E exatamente por saber que nada permanece, e por já ter sentido tantas vezes a falta do que um dia já foi alguma coisa, é que ele se enobrece e em festa se entrega totalmente ao ato do seu melhor momento: de frente para o espelho encara-se de forma madura, guarda na memória os traços que compõem hoje sua personalidade, ajeita de forma discreta características que não lhe agradam, valoriza ainda mais os princípios que desde cedo aprendeu a cultivar e sorri com uma inocência quase maliciosa para o que ainda está por vir. Por que ele sabe, mais do que qualquer outro, que a vida é um vai-e-vem de acontecimentos e momentos que se bem aproveitados compensarão todo o trajeto, do começo ao fim.

São Paulo, 08 de Setembro de 2008.