Reflexão natalina: o tempo e o sentido

Praticamente um bordão de nossa época nas conversas casuais é dizer que o ano passou voando. Aparentemente a sensação de tempo é interna e por isso as pessoas podem ter essa impressão. Mas, afinal de contas, o tempo passa da mesma maneira para todos, e as vinte e quatro horas de cada dia continuam passando segundo a segundo numa regularidade inabalável. Tendo isso na consciência, as conseqüências são inevitáveis.

Se a nossa sensação do tempo é interna, por isso varia de momento a momento, e sentimos o tempo voando sem que o percebamos algo dentro de nós nos faz sentir dessa forma. Se antigamente o calendário era atrelado a um translado terrestre ao redor do Sol por sentido estrito de necessidade da colheita eu não sei, mas me parece muito plausível que tenha sido por isso que o período de trezentos e sessenta e cinco dias e seis horas ganhou uma importância tão grande em nossas vidas. Dependíamos dessa contagem para semear, cultivar e colher. Assim o período estava intrinsecamente atrelado ao sentido da vida da pessoa, que não se voltada para o ano em si, mas para a sobrevivência, e consequentemente o plantio.

Se essa suposição é acertada não me parece muito importante agora, já que o principal dela funciona sozinho. Pelo que constato atualmente, tanto é maior a sensação de ligeireza do tempo na pessoa quanto maior for a falta de sentido de sua vida. Assim pessoas que passam atabalhoadamente pela vida sem qualquer rumo concreto sentem o tempo voando, os anos esvaindo e os momentos fugindo. Infelizmente é notável que a maioria das pessoas está inserida nisso até o pescoço. E por o período de um ano não fazer mais nenhum sentido em suas vidas, elas simplesmente o ignoram.

Quanto o período anual serve apenas para marcar as datas nas quais as pessoas terão que fazer isso ou aquilo, sem que isso ou aquilo seja realmente fundamental para a vida dessas pessoas, essas datas nada significam e por isso passam como que despercebidas. Se antigamente a Páscoa, o Natal, a comemoração da Independência e festividades similares faziam sentido para as pessoas é porque elas enxergavam nessas datas um motivo maior. Assim durante o período natalino tais pessoas realmente se enterneciam de um sentimento de renovação, ou reflexão, e por neles se inserirem mudavam, praticavam boas ações etc.. Não quero também idealizar nada, que sempre houveram pessoas desprovidas de sentimentos morais elevados é certo e a degeneração moral sempre existiu, mas quando a maior parte de um povo crê nalguma coisa, essa coisa faz parte do sentido da vida das pessoas que compartilham essa crença.

Basta olhar para os lados que veremos hoje um séquito de zumbis que não mais crêem em nada, e por isso são incapazes de compartilhar realmente nada. Os encontros natalinos tornaram-se simples festas que obrigatoriamente reúnem uma parcela, ou a totalidade, de uma família, que só é unida pelo título e nada mais. Nesses encontros falta uma coisa fundamental, sentido para aquilo. E novamente não quero dizer que em todas as casas isso aconteça, mas é o espírito de nosso tempo, logo da maioria.

Se durante todo o ano a pessoa não vê sentido para a própria vida e por isso deixa os momentos se acumularem na memória esquecida, que só funciona se ativamente renovada com o mesmo ato repetidamente refeito, não há milagre que a faça realizar isso durante certo período. Agindo assim na mesma essência, mas de jeitos diferentes, deixa transparecer o vazio profundo que a consome, que só pode ser esquecido pela simulação do sentimento natalino. Temos então uma época de puro sentimentalismo, o mesmo que aquele filme de drama barato causa no espectador que se debulha em lágrimas mais pela trilha sonora melosa que pelo conteúdo dramático, e que quando percebe já se passaram duas horas que vão ser esquecidas em mais um momento que se acumulará quando disser: o tempo passou voando.

Qualquer pessoa se desenvolve em ciclos, que possuem começo, meio e fim, mas nunca agem sozinhos e pontualmente. O ser humano é composto de vários ciclos que se interferem mutuamente e existem ao mesmo tempo. Por isso um começo pode estar ligado a um meio que nada mais é que uma manifestação de um fim. O processo é, então, complexo e profundo. Mas nem por isso a pessoa sabe que passa por ele, ou tem consciência dele, o que dá no mesmo. E esses ciclos são exatamente o sentido da vida da pessoa, quando vividos na plenitude da consciência. Quando o ser dá um rumo para eles a fim de se engrandecer e se completar.

Como passamos de uma época na história em que o período de um ano era essencial para a sobrevivência da pessoa para outra época, em que tendo a sobrevivência garantida – pois não precisamos mais fazer nossas roupas, plantar nossa comida etc. – não mais precisamos nos ater a um período específico, só podemos concluir que o sentido da vida mudou, ou se impõe sobre nós. Essa nova forma de viver dá mais autonomia para o indivíduo, que ganha o espaço merecido pelas mudanças que conseguimos realizar no âmbito da sociedade e da tecnologia. E por isso mesmo não existe mais sentido estrito no período de um ano.

Dessa maneira cada pessoa que teve a sorte de nascer em um ambiente minimamente confortável, e não precisa lutar diariamente pela estrita sobrevivência, não mais possui a obrigação essencial de se ater ao ano. Ficando como que livre dessa necessidade pode crescer como quiser. O que nos leva a concluir que o trabalho pelo sentido da vida ficou muito mais duro, mas muito mais livre e com um potencial muito maior. Então sem precisar plantar, colher ou fazer suas próprias roupas a pessoa tem uma liberdade maior para construir o próprio caminho. E aí reside o principal problema dos nossos contemporâneos.

Quando entramos em um curso universitário, por mais que ele seja, por mera gerência burocrática, dividido em períodos o período maior é que conta. Assim uma transformação individual, o crescimento mesmo, demora quatro anos em média para acontecer. Quando vemos um curso de língua estrangeira ter um programa de seis ou oito anos para concluir-se, esse é o período de tempo que precisa transcorrer para a tal transformação. Assim como uma gravidez só demora nove meses. Todos esses períodos, que não se resumem a esses citados, se entrecruzam criando um emaranhado de fios que devem ser cuidadosamente trazidos a consciência para que possam se unir no sentido da vida humana que os cria.

Percebendo essa realidade nada mais fugaz e inexistente que uma obrigação de se enquadrar num período divisor. O ano é uma imposição que perde o sentido quando visto por esse ângulo. E se anualmente temos o carnaval, a páscoa, as festas juninas e as festividades de fim de ano isso só serve para aqueles que não se conscientizaram da necessidade de se adaptar às novas imposições da vida. Então se um período de dois anos é necessário para que uma transformação se dê no âmbito dos estudos, esse período vai sofrer necessariamente um baque com tantas datas e festividades que serão impostas à força sem que façam muito sentido. O que desvirtua completamente o sentido original das ações do indivíduo.

Perdido nesse escarcéu de festividades impostas ele crê que o ano é simplesmente a divisão básica de sua vida e torce desesperadamente para que tal época chegue, sempre deixando na memória esquecida que essas épocas passam como um raio que cai do céu e não deixam muito a dizer, ou recordar, apenas se sucedendo numa série interminável de natais, carnavais e anos novos. Que só serão lembradas por isso mesmo, por sua noção lembrada em conjunto. Os natais, os carnavais, os anos novos, pois eles mesmos não trazem sentido algum para a vida do sujeito que não se realiza neles, mas sempre foge da realização mesma, que não está mais imposta pelos anos. Quando há uma colheita muito boa, em épocas de incertezas da sobrevivência, nada melhor do que comemorar efusivamente. Nada mais sem sentido que esperar o ano passar somente para comemorar algo que não traz consigo nenhum motivo bom para isso a não ser o próprio ato, simulado, de comemoração.

Vistas por essa perspectiva nossas festividades são uma clara demonstração da falta de sentido das pessoas que só dão sentido para a vida quando invertem completamente o trâmite natural das coisas e conseguem completar a inversão na desproporção das coisas. Enquanto que nada há para comemorar, comemora-se justamente porque não há mais nada a fazer. Dessa maneira vemos os natais se sucedendo sem que as pessoas parem para refletir realmente na vida, sem tomar decisões importantes, ou simplesmente realizar que a falta se sentido para suas vidas é justamente o que dá sentido a essas datas. Deixando no ar um sabor amargo que só pode ser saboreado se continuamente provado, pois se parar para pensar tudo que se pode lembrar delas é um amargo que não mais faz efeito, já que está distante. Exatamente da mesma maneira que bebemos uma cerveja. Só há razão para beber a cerveja enquanto bebemos a cerveja, depois aquele ato perde completamente o sentido. E se falta sentido para nossas vidas acabamos vendo sentido em beber, somente por beber, sem nada a comemorar, comemorando o ato de beber em si, quem nunca ouviu: vamos sair pra beber?

Enquanto a vida não for plena de sentido, qualquer comemoração será vã. E se comemorada só poderá parecer uma simulação. Assim como uma peça de teatro, em que nos permitimos acreditar que aquilo é real apenas durante a sua execução para logo depois, quando nos levantarmos da poltrona, nos lembrarmos que aquilo foi mera simulação. Mas faltando sentido no que vê o espectador somente aproveita a parte superficial da obra de arte, sempre carecendo de entendimento, e o máximo que diz é “foi bom” ou “não gostei”. Assim as festividades só se avaliam pelo “foi bom” ou “não gostei” do momento, e por faltar qualquer sentido intrínseco não se lembram do que, ou porque, comemoraram e logo aquilo é jogado fora para a memória esquecida. Se só podemos ter noção do tempo pelo que lembramos dele enquanto ele passa, esse ato voluntário de jogar todos os momentos sem sentido para a memória esquecida nos fazem achar que o tempo voa, enquanto o tempo permanece na dele da maneira mais impávida possível e se pudesse riria de nós que de tão egocêntricos não notamos que quem passa somos nós, cada vez mais rápido e cada vez com menos sentido. Assim não é difícil ver o quanto desvalorizado está o Natal, pois ao contrário do Carnaval ou do Ano Novo, não é um momento de festa, nem orgia, mas sim de reflexão, mas se não temos sobre o que refletir o momento de nada serve, então ao invés de nos consertarmos e voltarmos nossa atenção para isso, fazemos o mais fácil, arrumamos uma noitada para ir depois da ceia, chata, de Natal com a família, que seria idêntica a um aniversário de uma tia distante, se tivesse as mesmas comidas.

Quanto o sentido falta, falta o tempo, pois falta memória. Pra que se lembrar do que não tem importância? Assim substituímos plenamente nossa vida de sentido por uma busca incessante de um sentido pra vida, que por assim ser nunca vai se apresentar. E com isso, natais irão passar e no máximo iremos lamentar, no futuro, que o tempo passou tão rápido e os natais não são mais lembrados. Mas se tomarmos consciência de que o passado é a memória que temos dele e o futuro é uma projeção do que lembramos do passado veremos que esse futuro imaginado, tão deprimente, já é agora.