Aquaplanagem

Me sentindo velho, mesmo antes dos 30, me sentindo esquecido por Deus, mesmo tendo superado um tumor, e sentindo que falhei em meus propósitos, mesmo que as melhores oportunidades ainda estejam por vir, me encontro num lugar onde não há norte, nem maré, nem correnteza e tenho algumas poucas, mas boas, decisões a tomar.

Tentando me encontrar nessa paragem, saio em cima de uma bicicleta, como um garoto fugindo de casa atrás de aventura, na esperança de que a chuva que cai leve embora meus pensamentos e, assim, eu possa descansar. Enquanto passo por paisagens e lugares, velhos conhecidos meus, e atravesso córregos, lama e esgoto, minha cabeça é levada para longe, para o passado, e meus olhos enxergam apenas as coisas que passaram há anos atrás.

Eu estou na chuva, forte chuva, e a enxurrada ameaça me arrastar, do mesmo jeito que acontecia quando era criança e saía na rua para brincar com minhas irmãs. Quantas vezes a chuva me acompanhou! Quando eu tinha onze anos, depois de enfrentar as provas no final do ano, eu saí por aí com meus amigos, procurando encrencas para me meter e lugares para jogar, uma chuva caiu, e tudo pareceu mais divertido. E quando eu briguei em casa e saí na chuva, de bicicleta, e andei até chegar na casa que meus pais estavam construindo, me encontrei com meu primo, e voltei coberto de lama e alegria. Também quando partiu meu avô, e outras perdas na família, aquela chuva fina prestou seu cortejo fúnebre para todos nós.

Houve outras vezes, quando era um adolescente confuso e atordoado pelo despertar de sua consciência, a chuva me fez compania nas minhas andanças solitárias, e também foi solidária nas minhas primeiras derrotas. E quando eu me tornei jovem, e estava sentado num meio fio com um jornal na mão e a mochila nas costas, a procura de trabalho, envergonhado por precisar sacar da conta da minha mãe o dinheiro para voltar de minha infrutífera jornada para casa, começaram a pingar gotas de chuva para esfriar minha vergonha. Outra chuva, dias depois, fez suave o passeio com uma mocinha que conhecí, até o zoológico da cidade.

Meu tênis, minha mochila, e minha jaqueta! Todos amigos íntimos da chuva, ajudavam a me proteger de quem me dava proteção, em tantas aventuras, fracassos e também em alegrias.

E quando acordei da anestesia no hospital, a chuva estatelava nas janelas da enfermaria, me dizendo que eu iria ficar bem. E quando eu soube que seria pai, e saí correndo no parque, a chuva ajudou a digerir a felicidade que isso iria ser. A mesma chuva embalou, dias depois, uma noite que passei hora dentro do carro, hora na sala de espera da maternidade, onde minha namorada perdeu o bebê.

E hoje aqui estou eu, esperando que a chuva mais uma vez me alivie a cabeça, deixando meu espírito correr por cima da água, mergulhando meus pés e meias encharcadas na poças, esperando que a chuva me faça aquaplanar por cima da vida.