O inferno do outro sou eu

“GARCIN: O inferno são os outros” (Sartre).

Então... como cada um é o outro dos outros, baixemos a guarda. Um certo auto-desprezo se faz necessário, se queremos dizer que temos relações de coleguismo, companheirismo e amizade. Se nos levarmos muito a sério, então não conseguiremos derrubar as paredes do inferno. O caos absolutamente destrutivo seria nossa única solução.

“Há muito mais coisas acontecendo todo o tempo dentro de nós do que estamos dispostos a expressar, e a civilização seria impossível se pudéssemos todos ler a mente uns dos outros. Fora qualquer outra coisa, existe a luxúria tropical brutamente caótica da vida interior. Para citar Simmel: ‘Tudo aquilo que comunicamos a outro indivíduo por meio das palavras ou quiçá de outra forma – mesmo nos assuntos mais íntimos, subjetivos e impulsivos – é apenas uma seleção daquele todo psicológico real cujo relato fidedigno (absolutamente exato em termos de conteúdo e seqüência) implicaria o envio de todos sem exceção para o manicômio’” (Thomas Nagel).

Então... seremos uns para os outros sempre uma superfície, sempre um verniz, e, por isso mesmo, sempre um espelho. Se nesse nível de antessala alguém nos incomoda tanto a ponto de perpetrarmos o rechaço, então é porque nas profundezas de nós mesmos algo foi mexido e não temos condições de lidar com esse abalo.

Autoproteção: preferimos a recusa. E é mediante sucessivas autorrecusas que a vida se torna possível a todos, essa espécie de auto-enganos consensuados e infinitamente renovados, processo sem o qual nos implodiríamos de todo e teríamos de abrir mão de estar neste nosso mundo de mistérios e ignorares em comum. É aí que os poucos saberes que sabemos não podem fazer muito por cada um de nós.