Meia noite

São meia noite e trinta e cinco, e eu não consigo dormir. Um fantasma me persegue, eu sou um fantasma. Lá de longe eu ouço a música e as vozes dos homens, mas eu não sou bem-vindo. A festa, em algum lugar atrás das árvores, segue animada enquanto eu me sento sozinho a noite, com as janelas abertas procurando não sei o que. Um dia inteiro passou, são meia noite e trinta e oito, e eu não me sinto satisfeito. São meia noite e trinta e nove e eu estou sozinho.

Pássaros atrevidos cantam perto da minha janela, me aconselhando ir dormir, porque hoje o mundo não tem nada a mais para mim. São meia noite e quarenta, e eu desobedeço os conselhos sábios dos pássaros. São meia noite e quarenta e dois, e nenhum conselho acalma minha ansiedade tranquila.

E passa mais um minuto, e da janela eu vejo a rua, e sinto saudade. Saudade de quando eu não me arrependia do passado, e não temia o futuro. São meia noite e quarenta e três, e eu sinto medo. Tanto medo que não quero, não consigo dormir, e recuso qualquer oferta de remédio, anestesia ou consolo. São mais de meia noite, e eu não quero dormir.

São meia noite e quarenta e cinco, e eu sinto uma tensão nas mandíbulas, como se estivesse prestes a pronunciar palavras proibidas, e revelar segredos terríveis, e gritar de desespero e de alívio, e gritar um grito de protesto e libertação.

E agora eu não sei o que dizer, procuro nas gavetas minhas palavras, o fantasma não dorme, os pássaros não se calam, a ansiedade não passa. E são meia noite e quarenta e nove.

Eu tenho essa noite e nada mais. Pela manhã, eu não existirei mais, e outra pessoa viverá em meu lugar, usando meu corpo, e desfrutando dos frutos do meu trabalho, ou pagando por decisões erradas que tomei. São meia noite e cinquenta, eu estou com medo de mim mesmo, e não tenho lugar para me exilar.

São mais de meia noite, e eu quero dormir, mas meu fantasma não deixa. Os pássaros gritam ordens para que ele me deixe. As árvores que escondem dos meus olhos a festa lá longe me observam mudas e imparciais. A rua está tranquila e sua tranquilidade me atormenta. São meia noite e cinquenta e cinco, e a tensão das minhas mandíbulas me arrastam pra cama, e eu preciso engolir minha inquietação e meus sonhos.

São meia noite e cinquenta e sete, e essa noite, quando eu não conseguia dormir, já passou. O minuto passado é inalcançável. São meia noite e cinquenta e oito, e eu gostaria que fosse meia noite e trinta e cinco mais uma vez, quando meu espírito estava inquieto. São meia noite e cinquenta e nove, e eu vou para minha cama, desesperado e triste, por estar agora calmo e tranquilo, e já consigo dormir.