Quando fala uma criança

Em nossa cultura, a criança é “a”/“o” infante, “a”/“o” infantil, a/o sem fala. Por não ter fala, e por ainda não ter se inserido no discurso contaminado pelas toxinas adultas, quando fala uma criança, dela são todos os nossos ouvidos. Dela tem de ser todos os nossos ouvidos!

Quando fala uma criança*, fala a experiência pura da vida. Por isso, a nossa vida tem de se deixar confrontar com a fala daquele, ou daquela, que, em princípio, não discursa: revela o que a vida é.

Quando fala uma criança, falam a pureza, a espontaneidade, a naturalidade e a verdade possível que pode pairar sobre os nossos corações. Por essa razão, a fala infante não deve ser ouvida com os ouvidos naturais, mas com os músculos da alma.

Quando fala uma criança, aquele ser que representamos como angelical é o que tem a palavra. A ele, então, aquilo que em nós nos qualifica como potenciais seres límpidos, na luminosidade do que é e pode produzir o sentimento, esse que se resume na única certeza da qual ninguém no mundo tem o direito de duvidar.

Quando fala uma criança, fala o não-discurso ainda não cristalizado, capaz de reverberar a existência mesma, com a autenticidade parecida à que faz o sol não se confundir com a lua, tal como uma energia sublime, que nos mostra que não somos apenas um amontoado de peças materiais, mas, muito mais que isso, seres transcendentais.

Quando fala uma criança é o sentido mesmo que nos fala o que a vida é – legítima, na essência, o profundo lugar em nós no qual podemos ser plenificados, inteiros. O contrário disso, vazado em maldades mil, não vem dessa criança aí a que me refiro ou já é a criança contaminada pelo veneno do adulto, malisioso e vil. Tirando isso, quando fala uma criança, é o bem que está a nos falar.

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*"Desde que eu nasci, você tem sido o melhor pai que se pode imaginar. Eu só queria dizer: te amo muito" (Paris, 11, filha de Michael Jackson, na cerimônia de despedida do pai, dia 07.07.2009).