Saber terminar

“Alto lá, meu livrinho! Devagar! Calma agora! Chegamos ao fim da jornada, e você ainda quer galopar adiante, sem controle, transpor a página derradeira, como se o seu serviço já não estivesse feito” (Marcial, século I d.C., Epigrammaton. Livro IV, epigrama 89).

Parece que não é apenas um livro que a gente não sabe bem como terminar. Lembro do meu mais recente, sobre Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que demorei uma semana para decidir o que colocar na última página. Premido pelo tempo (ele ajuda a decidir), lembro-me que optei por testemunhos de alunos sobre a satisfação de concluir o tal do TCC.

Noto, porém, como disse, que essa dificuldade de saber terminar parece se estender aos processos mesmos da vida. Um caso explícito disso é o que me chega quando digo que sou divorciado. “Que pena!”, “Por que não deu certo?”, “Triste perder um amor”.

Meio que me deliciando por dentro, tomo a iniciativa de ir desmistificando essas indagações:

Primeiro: Não perdi ninguém. Ganhei, por uns longos e bons anos, a companhia de uma pessoa fantástica (se não fosse, eu não teria me dado a ela). Pessoa não é igual a um objeto que a gente deixa quebrar, que a gente perde, esquece por aí... Pessoas são seres com os quais a gente pode se relacionar, a eles se vincular, mas jamais portar igual a um relógio ou um anel. Logo, minha história de vida tem este ganho aí: do vínculo e da relação afetiva que vivi com ela, com as alegrias e as tristezas intrínsecas a esse tipo de vivência.

Segundo: Foi uma relação que deu tão certo que teve início, meio e fim. Tristes são as relações que não tem como fechar o próprio ciclo, concluir o sentido, o período de vigência, e começam a se arrastar, mortas-vivas, como um moribundo que nunca deita no caixão. Que coisa? Quando é que vamos aprender que relações humanas também acabam e que a magia está em recriar, constantemente, novas relações? Por conta de que nos apegamos tanto aos restos mortais de relações que já não podem mais nos dar o que tinham pra dar e que já fizeram o seu trabalho?

Terceiro: Não há pena em começar e terminar uma relação. Há um galinheiro inteiro é na imaturidade de ver o outro como um apêndice, esse sem o qual digo que não vivo. Olha, se você não é capaz de viver por si mesma, como penduricalho do meu ser é que você não vai viver. Se inteira, seja feliz em si, que isso é condição para compartilhar-se com outro inteiro e também feliz. Aí a alegria sempre, por ter sabido iniciar, celebrar o durante e, sobretudo, por ter sabido concluir.

Saber concluir um livro, saber terminar uma relação: nisso não estariam o segredo da autodeterminação e o mistério vivo da liberdade? - valores éticos que nos garantem que somos em nós aquilo que fizermos de nosso próprio ser?