A fofoca

Wilson Correia*

Se for fato que a conversa e o diálogo, propiciadores do feedback, contribuem para a socialização dos seres humanos, o certo é que a fofoca em nada pode auxiliar na nossa educabilidade. Foi isso o que tentou evidenciar o psiquiatra José Ângelo Gaiarsa quando escreveu o livro “Tratado geral sobre a fofoca: uma análise da desconfiança humana”. 5. ed. São Paulo: Summus, 1978. Segundo ele:

“Ninguém se deteve ainda sobre este processo: a fofoca, o mais fundamental dos fenômenos humanos, acontece de tal forma que se esconde na medida em que aparece" (Gaiarsa, 1978, p. 15).

"Em números redondos estimo que 20% de tudo o que se diz no mundo é conversa funcional, é ordem, pedido, informação, constatação, declaração. É a palavra ligada a fatos, proveniente de fatos e influindo sobre eles, de um modo imediato e demonstrável" (Gaiarsa, 1978, p. 16).

"Os restantes 80% de todas as conversas do mundo poderiam ser chamados de Conversa-Fiada Cósmica (V. Flusser, que definiu o termo. Nada tem a ver com os números). Trata-se de falar por amor à conversa, de falar por falar, de papo. Os antigos diziam: tagarelice, loquacidade" (Gaiarsa, 1978, p. 16).

"Uma análise da Conversa-Fiada mostra que ela pode ser dividida em duas partes iguais: 40% dela é Fofoca e 40% é afirmação de Preconceito" (Gaiarsa, 1978, p. 16).

"A Fofoca é trágica. Ela é o principal instrumento e motivo de toda autocensura, de toda autocastração, de toda irrealização pessoal" (Gaiarsa, 1978, p. 21).

"Quando se sabe de uma Fofoca grande, pode-se ter certeza de que foi construída à custa da frustração de muitas pessoas, cada uma delas acrescentando ao relato o seu medinho individual" (Gaiarsa, 1978, p. 28).

"Resumindo o parecer dos autores mais conceituados, podemos dizer que Fofoca é a informação ou o comentário tendencioso sobre um terceiro ausente" (Goiarsa, 1978, p. 29).

"A notícia, ao passar de pessoa para pessoa, vai sofrendo alterações e/ou acréscimos, que a modificam" (Gaiarsa, 1978, p. 29).

"Mais importante, porém, do que essa modificação da notícia, é a INTERPRETAÇÃO que o Fofoqueiro faz das ações ou ditos de sua vítima" (Gaiarsa, 1978, p. 29).

"Quem a faz [a fofoca] e quem a ouve são CÚMPLICES num CRIME COMUM. São CONSPIRADORES que estão traçando uma rede na qual apanham alguém que fez ou disse coisas contrárias à moral ou aos bons costumes - dos dois!" (Gaiarsa, 1978, p. 31).

"TODOS OS FOFOQUEIROS SÃO POLICIAIS DO ESTATUS QUO" (Gaiarsa, 1978, p. 21).

Um caso! Um desafio! Um empecilho! Um nojo! Um saco! Repugna. Nausea. Faz mal só de presenciar. É a miserabilidade humana escancarada... A fofoca é injusta porque, além de cravar uma interpretação subjetiva sobre outrem, é um ato que rouba do outro o direito de se defender, de contrapor a sua versão do assunto objeto da fofoca. A fofoca esconde aqueles que são incompetentes no cuidado da própria vida e que assim o fazem para se esconder na vida do outro, ingenuamente acreditando que fofocam sobre um outro, quando, na verdade, revelam a própria podridão.

"Uma gaiola - o tórax.

Um passarinho -

que é uma palavra

que é um anseio.

O meu anseio, que eu não

realizo

- que está preso no meu

peito - sufocando

- é o que me

incomoda no outro.

Por que ele pode voar

e eu não?

Porque ele pode cantar

E EU NÃO"

(Gaiarsa, 1978, p. 70).

Oportuna, pois, é a história "atribuída" a Sócrates [não pude comprovar se a história a seguir é mesmo de Sócrates] que é a metáfora das Três Peneiras:

“Conta-se que, certa vez, alguém procurou Sócrates para contar-lhe algo sobre a vida de um amigo comum.

– Quero lhe contar algo sobre o nosso amigo Andréas.

– Espere, o interrompeu Sócrates: submeteu o que vai me dizer ao teste das Três Peneiras?

– Três peneiras? Espantou-se o interlocutor.

– Primeira peneira: o que me contará é verdade?

– Segunda peneira: a coisa que pretende me contar é boa?

– Terceira peneira: o que tem a intenção de me contar é de utilidade tanto para mim, para o nosso Andréas e para você mesmo?

– Não, não e não.

– Então, caro amigo, disse Sócrates, a coisa que pretendia me contar certamente não é verdadeira, nem boa nem útil – assim sendo, não tenho a intenção de conhecê-la e o aconselho a não divulgá-la” (http://www.geocities.com/Athens/4539/index.html).

Curiosamente, o fofoqueiro e a fofoqueira de plantão não portam nenhuma peneira em sua vida pessoal, profissional e social. Eles apresentam, isso sim, muito veneno na ponta da língua, muito ácido corrosivo no verbo e muito desprezo por si próprios, faltando-lhes a segurança necessária para ser o que são, sem projetar nos outros as próprias deficiências. E não é que alguém já disse que “A boca fala do que está cheio o coração”?

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.