Saber ouvir

Wilson Correia*

Certa vez, o professor ensinava música. Então, um aluno perguntou qual era a magia do violocelo, o qual pertence à família dos instrumentos de corda, de quatro cordas afinadas em quintas, primo do violino e integrante do grupo familiar da viola. O violoncelo produz encantamento em quem sabe apreciá-lo, justo o que se via naquele mestre. Por isso o estudante quis entender de onde vinha a força daquela melodia.

O mestre respondeu que o violoncelo fazia com que ele, ensinante, ouvisse o movimento da porta do paraíso. Ao que o aluno replicou que ele, estudante, também conseguia ouvir a mesma música. Só havia um enguiço: ele, aprendiz, ouvia apenas a música, e não o movimento da porta do paraíso que ela produzia.

Então o mestre pontificou que o descompasso entre o produto da audição de um e o resultado da audição de outro residia numa diferença sutil, muito especial: ele, professor, ouvia a porta do paraíso quando ela se abria, ao passo que o estudante só a ouvia quando ela se fechava. Essa era a causa do encantamento de um e do não encantamento de outro.

Entre tantas lições que essa história sugere, uma delas reside no “saber ouvir”, essa arte que, segundo Arthur da Távola, é um desafio, tal como inseriu no livro Mevitevendo (Rio de Janeiro: Salamandra, 1977), de quem cito os números que seguem, de 1 ao 12,

“1) Em geral o receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que o outro não está dizendo.

2) O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que quer ouvir.

3) O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que já escutara antes e coloca o que o outro está falando naquilo que se acostumou a ouvir.

4) O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que imagina que o outro ia falar.

5) Numa discussão, em geral, os discutidores não ouvem o que o outro está falando. Eles ouvem quase só o que estão pensando para dizer em seguida.

6) O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que gostaria ou de ouvir ou que o outro dissesse.

7) A pessoa não ouve o que a outra fala. Ela ouve o que está sentindo.

8) A pessoa não ouve o que a outra fala. Ela ouve o que já pensava a respeito daquilo que a outra está falando.

9) A pessoa não ouve o que a outra está falando. Ela retira da fala da outra apenas as partes que tenham a ver com ela e a emocionem, agradem ou molestem.

10) A pessoa não ouve o que a outra está falando. Ouve o que confirme ou rejeite o seu próprio pensamento. Vale dizer, ela transforma o que a outra está falando em objeto de concordância ou discordância.

11) A pessoa não ouve o que a outra está falando: ouve o que possa se adaptar ao impulso de amor, raiva ou ódio que já sentia pela outra.

12) A pessoa não ouve o que a outra fala. Ouve da fala dela apenas aqueles pontos que possam fazer sentido para as idéias e pontos de vista que no momento a estejam influenciando ou tocando mais diretamente.”

Dessa maneira, associadas a história do mestre de música e seu aluno com essas sugestões de comunicação truncada oferecidas por Arthur da Távola, penso que na escola e na vida algum estudo sobre como ouvir (falas, escritos, imagens, movimentos...) nos faria bem. Há tantos ouvidos moucos afrontando bocas sapientes por aí...

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.