Quando Sou Deus

Existe um pequeno mundo dentro de mim. Meu coração é o Sol. Minhas entranhas são uma densa floresta em meu ventre. Em minha mente existem simultaneamente um céu e um inferno. Minhas pernas são os pilares do mundo. Em algumas ocasiões, desastres são tão fortes que perco o controle sobre elas e caio e em mim acontece um pequeno cataclismo. Meus braços tentam sempre ampliar este pequeno universo, me fazendo muitas vezes acreditar que ele é infinito, para muito além de mim. Logo percebo que sua infinitude limita-se ao alcance de meus braços.

Quando estou feliz, meu coração queima e o verão chega. Os sonhos e as lembranças saem juntos para passear dentro de mim. Tudo é muito intenso, muito forte, muito cheio de calor, de som, de vida! Mas nunca dura muito. Se durasse, eu secaria e morreria por dentro, pois essa felicidade passaria a não significar nada mais por ter se tornado algo comum. Eu me enfadaria e seria um convidado chato em minha própria comemoração.

Quando a felicidade começa a se dissipar, os pequenos problemas começam a me atormentar, o dinheiro começa a acabar, começo a sentir aqueles ciúmes chatos, os versos voltam a se multiplicar em minha mente junto a pequenas tristezas, tudo muda de cor, vai se tornando marrom, amarelo, sóbrio, silencioso, aos poucos. Me outono no começo de muitos fins. Vem um desespero implacável a me assaltar por sentir minha impossibilidade de manter a felicidade, a vida dentro de mim. Sinto tudo que é bom me escapar por entre os dedos, pelo canto da vista ou no horizonte distante, com o suor saindo pelos meus poros. E não há nada nem ninguém que possa impedir...

E então vem ele, o inverno, e me sinto morto, frio, silencioso, branco. Sinto-me profundo e, no entanto, completamente vazio. Tudo em mim se apaga numa claridade sem fim que me cega para tudo o mais que não é o inverno em mim. Não sou capaz de perceber quase nada, e, quando o sou, percebo sempre por trás da lúgubre capa branca. Uma capa branca, impecável, uma mortalha que cobre tudo que toco, tudo que sinto. Tudo me parece encoberto por fatalidades, todas as luzes são lúgubres dentro de mim. Apenas meu coração não fica branco, mas sim negro e enrugado feito uma ameixa. Em vez de dar a vida ao mundo dentro de mim, ele a rouba. A luz pálida que surge é ainda pior que a mais escura das noites, pois nelas eu teria pelo menos as estrelas por companhia. Mas nessa imensidão branca, me sinto como se estivesse eternamente só. O amor passa a ser fonte de dúvidas e dores. Os amigos passam a ser fonte de desconfiança e desilusão. O dia ri na minha cara por causa de minha impossibilidade de suportar a infinitude de suas horas.

E então, quando nada resta, quando estou há muito esquecido que um dia houve um mundo em mim, ela vem. É como se uma lata de tinta tivesse sido derramada dentro de mim, mas uma lata que contivesse miríades de cores que se misturam, se combinam, se dissociam, se espalham sem ordem, sem padrão, livres, selvagens, como cores bárbaras a me tomar, a saquear a brancura do inverno. Espalham-se ligeiras tingindo aqui e acolá, fazendo reaparecer o bosque em meu ventre, dessa vez florido, fazendo com que o calor do sangue volte a se fazer sentir pelos rios que correm por todo o meu corpo. Não dá tempo sequer de entender, quando menos espero as cores já tomam meu coração, já estão dentro dele e são ele. Meu coração se tinge rubro intenso, flamejante e começa a se libertar. Labaredas enormes de meu coração em chamas anunciam o amor que voltou, dessa vez trazendo alegria, felicidade, paixão, uma fome louca de beijos, uma sede sem fim de ter ela comigo, uma torrente forte de poemas e declarações de amor se derramando e espalhando por toda parte. Estou vivo outra vez.

Tudo começa outra vez.

Mas tudo é eternamente novo para mim. Um dia, provavelmente, esse mundo não irá agüentar. Um dia, acredito, o inverno será tão rigoroso, ou haverá um cataclismo tão grande que nem mesmo a primavera com todo o seu amor e suas cores, nem mesmo o verão com todo o seu calor e sua vida poderão salvar esse mundo. E então ele se dissipará para dar lugar a um novo, e eu serei esquecido.

Quando penso nisso não sinto tristeza. Nem alívio. Nem felicidade. Não sinto nada, acho. Apenas compreendo, ou acho que compreendo. Não desejo que seja eterno, mas tampouco me agrada a idéia de um fim, se eu soubesse que ele viria agora.

Houve muitas eras nesse meu pequeno mundo, eras de prosperidade e eras negras, eras em que havia diversos deuses provenientes dos mais diversos lugares e épocas em que nenhum deus existiu além de mim. Houve eras em que havia felicidade por toda parte por muitos e muitos séculos e houve eras em que chovia o tempo todo e as noites duravam meses, às vezes anos. Houve guerras e houve muita fome, principalmente quando partes desse mundo, um mesmo mundo, decidiram que eram melhores umas que as outras ou que ele deveria adaptar-se a coisas alienígenas a ele.

Quando esse mundo acabar, ainda ecoará por algum tempo por lembranças e pegadas quase esquecidas até que um dia possa ser completamente desfeito no ar...