Preconceito é ódio a si próprio

Do preconceito linguístico e outros ódios

Wilson Correia*

No livro ‘Preconceito lingüístico: o que é, como se faz”, Marcos Bagno nos oferece as teses que seguem:

A língua é humana, social e historicamente elaborada. Desse modo, a língua sofre transformações ‘históricas’ (envolve uso e desuso), ‘geográficas’ (vocabulário, pronúncia, sons e sintaxe variam de região para região entre os falantes de um mesmo idioma), ‘sociais‘ (classe, idade, sexo, escolaridade interferem no uso e desuso da língua) e ‘estilística’ (maneira de falar personalíssima, particular, de cada pessoa).

Há a língua viva e a língua gramaticalizada. A gramática é a tentativa de normalizar a língua viva. Normalmente, a gramática é empregada para estabelecer a ‘língua padrão’. E é aí que reside a gênese do preconceito linguístico: quem não domina a língua padrão acaba por ser excluído por aqueles que dominam o padrão considerado correto, certo, culto.

O preconceito linguístico é o ato que discrimina a pessoa por conta do modo como ela fala. Quando o falante não emprega a norma padrão de prestígio, então a fala dele é tachada de ‘feia’, ‘errada’ e ‘deselegante’. Por extensão, o preconceito linguístico acaba discriminando pelo fato de a pessoa ostentar uma condição social, uma identidade e uma subjetividade que não se enquadram no contexto do que os dominantes consideram ‘normal’, ‘bonito’, ‘correto’ e ‘elegante’.

Em termos de língua materna, não existem o ‘certo’ e o ‘errado’, mas, sim, ‘prestígio’ ou ‘desprestígio’. Por isso, para se evitar essa modalidade de preconceito, as diferenças (históricas, geográficas, sociais e estilísticas) devem conviver com a norma padrão (‘gramaticalizada’, ‘culta’) do idioma.

Segundo Marcos Bagno, todo o preconceito linguístico que se verifica no Brasil está baseado na seguinte mitologia:

PRIMEIRO MITO: Há uma unidade surpreendente na língua portuguesa falada no Brasil. Esse entendimento acaba redundando-se em um mito porque essa ‘unidade’ da língua falada no Brasil nunca existiu, uma vez que cada região tem o seu modo próprio de falar a língua portuguesa.

SEGUNDO MITO: Brasileiro não sabe falar a língua portuguesa. Os portugueses, sim, falam a língua portuguesa. Essa compreensão, além de desconsiderar as variações que podem ser verificadas entre os falantes de um idioma, confunde ‘escrita’ e ‘fala’, recorre ao ‘certo’ e ao ‘errado’, noções que não cabem quando o assunto é língua materna.

TERCEIRO MITO: A língua portuguesa é muito difícil. Esse mito tem a ver com a gramática da língua portuguesa, que se originou em Portugal, e sua aplicação na língua falada, não levando em consideração que se tratam de variantes da língua.

QUARTO MITO: As pessoas não escolarizadas falam tudo errado. Atropela-se, aí, diferenças existentes entre o ‘oral’ e o ‘escrito’, entre o ‘dicionarizado’ e o ‘informal’, o que desrespeita, ainda, a diversidade geográfica e cultural dos falantes da língua portuguesa.

QUINTO MITO: É no Maranhão o lugar onde se fala melhor a língua portuguesa em nosso país. Isso é um mito porque, quando se trata de língua materna, fica automaticamente descartada a qualificação dela como a ‘melhor’, a ‘mais pura’, a ‘mais bonita’, a ‘mais correta’ com relação a outra língua materna, incluindo, aí, as variações no interior de um mesmo idioma.

SEXTO MITO: O certo é falar desse modo porque é desse modo que se escreve. Aí há a tendência de uniformizar a língua falada e a língua escrita, desrespeitando as suas especificidades. A língua escrita é apenas a representação da língua falada, o que faz com que a primeira apresente limitações que a impede de dar conta da totalidade e da riqueza da língua viva, feita pela oralidade.

SÉTIMO MITO: É preciso saber gramática para falar e escrever bem. Há, aí, a confusão entre língua e gramática normativa, prevalecendo o emprego ideológico de normas gramaticais no ensino da língua.

OITAVO MITO: O domínio da norma culta é instrumento de ascensão social. Aí o complemento à tese de que o preconceito linguístico não se limita à discriminação relativa ao emprego da língua portuguesa, mas é, também, preconceito social, cultural e econômico, revelando que o preconceito linguístico encontra-se acompanhado de outros ódios.

Note que há mais de dez anos Marcos Bagno (1999) produziu esse trabalho, filiando-se a autores como Cameron (1995), Possenti (1997) e Viana (2004), entre outros. Contudo, o preconceito ainda permanece como um sério desafio para quem atua na área da educação.

Tenho para mim que toda forma de preconceito e discriminação é a manifestação de ódio contra o outro, a qual revela, sem mais, o ódio que o próprio preconceituoso alimenta em relação a si mesmo. A dificuldade de auto-aceitação e de autolegitimação conduz o discriminador a fazer do outro o alvo que, a rigor, localiza-se em sua própria mente e coração.

Há gente por aí que ainda alimenta a ingenuidade de acreditar que conhecimento, títulos e credenciais acadêmicas libertam os indivíduos. Não. O que liberta é uma postura ética aberta a si próprio e ao outro, compreendidos, um e outro, como manifestações de vida, essa que devo respeitar porque é a mesma que vai de mim ao diferente 'não eu', a qual me arranca do ‘eu celular’ para o ‘nós coletivo’ e que me pede a generosidade de ir do ‘meu’ ao ‘nosso’.

Enquanto não construímos um tal entendimento ético, muitos mitos continuarão a alimentar atitudes preconceituosas, como essa aí, tão bem explicada por Marcos Bagno, e que tanto nos tem ajudado a buscar uma prática educacional mais humanizada e com menos ódios destruidores; uma prática que nos humanize, a nós, educadores, em primeiro lugar.

Referências

BAGNO, M. ‘Preconceito lingüístico: o que é, como se faz’. São Paulo: Loyola, 1999.

CAMERON, D. ‘Verbal hygiene’. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1995.

POSSENTI, S. ‘Por que (não) ensinar gramática na escola’. Campinas: Mercado das Letras, 1997.

VIANA, N. ‘Educação, linguagem e preconceito lingüístico’. Plurais, v. 01, n. 01. Jul.-Dez. 2004.

Sítios:

Bagno: http://www.marcosbagno.com.br/

Nildo Viana: http://sites.google.com/site/artigosdenildoviana/

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br