Condenados a nossos dons

Condenados a nossos dons

Há quem não compreenda como nossos dons nos condenam, pois aquilo que nos dá identidade justamente é aquilo que mais nos limita, passamos a responder com aquele mesmo molde, e a vida se automatiza, pode ser tendência à caridade ou avareza excessiva, mas há em toda marca de si ônus. Tipologias nos apontam isto: tendemos a repetir. Eneagrama é uma destas tipologias que me deslumbra, pois tamanha perfeição me descreve em um de seus 9 tipos, que não há teoria psicanalítica, comportamental, ou outra da psicologia que alcance tamanha sabedoria.

Mas este texto não nasceu de uma explanação sobre o deslumbre de uma ciência, mas da conclusão dolorida de que: ser escritor é muitas vezes nascer com o dom de se desmanchar em palavras doces, profundas, cortantes ou curativas mas ser inapto em vários aspectos em expressar emoções e afetos quando diante do ser amado. Talvez por temer parecer a caricatura tosca de um declamador abobado, ou por temer ter que, algum dia, admitir que me mostrei mais do que deveria a outrem, mas não conseguir expressar o que se sente, me parece, não seria o maior dos pecados? Amor, eis algo que inexiste como coisa, pois só existe (ou não existe) dentro das pessoas, e só pode passar a existir de modo palpável por via das ações, palavras, gestos. O aperto no peito, suar das mãos pode até ser percebido, mas há quem maltrate, agrida e seja estúpido com quem jura amar, daí seria a intenção, o sentir que exprime o amor?

Gostaria de conseguir olhar no fundo dos olhos, daquele a quem dedico sentimentos fortes e profundos, tudo o que sinto, mas antes de desfaria em lágrimas, ou simplesmente ficaria em pesado silêncio, como que pensativa, mas conseguir colocar para fora, eis a dificuldade extrema!

A incapacidade de expressar só me parece menos grave que aqueles que ao contrario são capazes de dizer de amores e sentimentos que não lhe habitam o peito com naturalidade, sem qualquer pesar, isto de fato me assusta, pois aí sim, vira um jogo, e é graças a este jogo que sempre descremos dos sentimentos que nos dizem. Dilema: se esforçar para dizer algo nascido dos entremeios de sua alma para que o outro não creia, ou simplesmente tentar expressar de outros modos e esperar, com alguma fé, que este outro amado não interprete a falta de expressão direta como falta de afeto de nossa parte.

Acredito que amar é um presente, e ser correspondidas: uma dádiva, e poder viver este amor: a plenitude, pois mesmo com dificuldades, tendo que abrir mão do ser amado graças às contingências, fortalece, fomenta, aquece este amor. E o amor não é a certeza da felicidade, é aquela sensação gostosa de ter alguém que, mesmo longe, você gosta e quer bem, é ter alguém cujo colo, calor, sorriso, parece deixar tudo mais fácil de viver, é uma tipo de certeza que toma conta de você, como se finalmente aquela busca, que sempre foi cheia de um medo da solidão, como se você agora tivesse realmente alguém preenche este lugar na sua alma.

Gostaria de deixar claro que amor também não é, ao mesmo tempo, certeza no sentido de infinito ou perfeito, mas é a sensação de ter, na vida, algo certo, que nem sempre parece tão certo, pois é o algoz e a ressurreição, no amor a alma se sente fênix, pois renasce sempre neste outro que é justamente fogo...

"Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer..."

Camões

T Sophie
Enviado por T Sophie em 05/11/2009
Reeditado em 05/11/2009
Código do texto: T1906567
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