Amor, loucura e poesia

Citação...

"Edgar Morin

A idéia de se poder definir o gênero ‘homo’ atribuindo-lhe a qualidade de ‘sapiens’, ou seja, de um ser racional e sábio, é sem dúvida uma idéia pouco racional e sábia. Ser ‘Homo’ implica ser igualmente ‘demens’: em manifestar uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; em carregar consigo uma fonte permanente de delírio; em crer na virtude de sacrifícios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder a mitos e deuses de sua imaginação. Há no ser humano um foco permanente de ‘Ubris’, a desmesura dos gregos.

A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, barbárie, cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e as irrupções do imaginário, e sem a loucura do impossível, não haveria ‘élan’, criação, invenção, amor, poesia. O ser humano é um animal insuficiente, não apenas na razão, mas é também dotado de desrazão.

Temos, entretanto, necessidade de controlar o ‘homo demens’ para exercer um pensamento racional, argumentado, crítico, complexo. Temos necessidade de inibir em nós o que o ‘demens’ tem de homicida, malvado, imbecil. Temos necessidade de sabedoria, o que nos requer prudência, temperança, comedimento, desprendimento.

Prudência, sim, mas isso não significa esterilizar nossas vidas, evitar riscos a qualquer custo? Temperança, sim, mas será mesmo necessário evitar a experiência da ‘consumação’ e do êxtase? Desprendimento, sim, mas será mesmo necessário renunciar aos laços de amizade e amor?*

O mundo em que vivemos talvez seja um mundo de aparências, a espuma de uma realidade mais profunda que escapa do tempo, do espaço, de nossos sentidos e do nosso entendimento. Mas nosso mundo da separação, da dispersão, da finitude significa também o mundo da atração, do reencontro, da exaltação. E estamos plenamente imersos neste mundo que é o de nossos sofrimentos, felicidades e amores. Não experimentá-lo é evitar o sofrimento, mas também não haverá o gozo. Quanto mais estamos aptos à felicidade, mais nos aproximamos da infelicidade. O 'Tao-te-ching' diz muito apropriadamente:’A infelicidade caminha lado a lado com a felicidade; a felicidade dorme ao pé da infelicidade.’ Estamos condenados ao paradoxo de manter em nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do mundo e da plenitude que nos propicia a vida quando pode ou quando quer. Se a sabedoria nos incita ao desapego do mundo da vida, será que ela está sendo verdadeiramente sábia? Se aspiramos à plenitude do amor, isso significa que somos verdadeiramente loucos?

Reconhecemos o amor como o ápice mais perfeito da loucura e da sabedoria, ou seja, que no amor, sabedoria e loucura não apenas são inseparáveis, mas se interpenetram mutuamente. Reconhecemos a poesia não apenas como um modo de expressão literária, mas como um estado segundo do ser que advém da participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e, obviamente, do amor, que contém em si todas as expressões desse estado segundo.

A poesia é liberada do mito e da razão, mas contém em si sua união. O estado poético nos transporta através da loucura e da sabedoria, e para além delas.

O amor faz parte da poesia da vida. A poesia faz parte do amor da vida. Amor e poesia engendram-se mutuamente e podem identificar-se um com o outro. Se o amor expressa o ápice supremo da sabedoria e da loucura, é preciso assumir o amor.

A sabedoria pode problematizar o amor e a poesia, mas o amor e a poesia podem reciprocamente problematizar a sabedoria. O itinerário aqui proposto que conteria amor, poesia, sabedoria, comportaria, em si mesmo, esta mútua problematização.

Devemos fazer tudo para desenvolver nossa racionalidade, mas é em seu próprio desenvolvimento que a racionalidade reconhece os limites da razão, e efetua o diálogo com o irracionalizável.

O excesso de sabedoria pode transformar-se em loucura, mas a sabedoria só a impede, misturando-se à loucura da poesia e do amor.

Nosso cotidiano vive sempre em busca do sentido. Mas o sentido não é originário, não provém da exterioridade de nossos seres. Emerge da participação, da fraternização, do amor. O sentido do amor e da poesia é o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poesia, quando concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude de sentido ao ‘viver por viver’.

A partir daí, podemos assumir, mas com plena consciência, o destino antropológico do homo sapiens-demens, que implica nunca cessar de fazer dialogar em nós mesmos sabedoria e loucura, ousadia e prudência, economia e gasto, temperança e ‘consumação’, desprendimento e apego.

Tudo isso implica endossar a tensão dialogal, que mantém permanentemente a complementaridade e o antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionalidade” (MORIN, E. ‘Amor, poesia, sabedoria’. Trad. E. de A. Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p 7-9).

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*Compareci ao ‘Seminário Internacional Crise Civilizacional: Distintos Olhares – transição de paradigma de desenvolvimento nos países do Sul’, que aconteceu entre os dias 22 e 24 de junho de 2009, no auditório Cuica, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), em Palmas, onde Edgar Morin também compareceu. Ele, que nasceu em 1921, perto de 90 anos de idade, fazia-se acompanhar por uma jovem de aproximadamente 20 anos de idade. Os comentários eram de estranheza. De minha parte, achei aquilo muito natural. Penso que só podemos renunciar aos sentimentos de amizade, amor e paixão quando tivermos de ir para o cemitério. Escandaloso seria se Morin tivesse renunciado a viver... (Wilson Correia).