Reflexão (dolorida) de Natal

O centro da cidade lotado, período de natal, gastos, grande volume de sacolas que acertam a todos, não esqueça de levar todo o seu estoque de paciência e compreensão, e claro, o cartão de crédito...

Irônico que ignoramos, durante todo o ano, a existência de alguns “amigos”, parentes e conhecidos, mas no natal, vamos enviar nossa tentativa de comprar a proximidade com uma lembrancinha que é “a cara dele”... Ganhar presentes é sempre bom, mesmo que seu pensamento depois seja: “nossa o cara não me fez sequer uma ligação...”, culpe a falta de tempo, ou admita a frieza dos corações, é uma época que egoísmo está sobrando, e os afetos cada vez em menor dose.

Às vezes nos perguntamos o que nos resta, ainda, de humanidade já que passamos mais tempo em frente a uma tela colorida, com a ilusão de que ali, do outro lado, há alguém de carne e osso. Mas se minha pele não sentirá um abraço, ou um toque deste outro, se fosse um programa ou um jogo, não faria a menor diferença, às vezes nos sentimos mais próximos de personagens de filmes e séries que de pessoas que convivemos, pois parece que podemos vê-los com a distancia segura que nos impede de nos envolver. É fácil ser fã de um artista, pois não tem que conviver e ele se mostra tão “perfeito”, belo, inteligente, etc., cabe toda a gama de adjetivos, e pessoas reais são repletas de defeitos, que somados aos nossos nos faz pensar se não seria melhor ficarmos sozinhos.

Construir castelos de cartas, é esta a lógica atual, é tudo tão etéreo, tendendo a desvanecer diante de nossos olhos, que tudo se torna superficial e momentâneo demais, não sentimos dor, mas no fim não sentimos coisa alguma... Quando chove e acaba a luz, seus amigos virtuais somem, aTV também, sequer o rádio te salva do eco de seus medos e inseguranças, e o silencio te faz lembrar que você é tão sozinho!

O anonimato das multidões é tão barulhento, tão cheio de estímulos visuais que não refletimos que ele representa a frase clichê “solidão em meio à multidão” no menos simbólico e mais dolorido real, a metáfora é nossa cegueira que acha tudo aquilo “normal”. Nossa prisão de concreto de caminhos traçados, propriedades demarcadas, é nosso inferno; até o amor é condenado a certos espaços plastificados e assépticos, as luzes nos apontam por onde ir, e há uma lista que nos diz onde é melhor e onde é pior, e temos que caber em um ritual de gestos, e tudo o que fazemos é uma encenação barata, que suga o que restaria de espontaneidade ou genuína expressão humana, somos marionetes que tem que obedecer, pois olhos vigiam todo o tempo, prestes a rir ou colocar na internet qualquer gafe. Anônimo mas perseguido, temendo se tornar ícone de algum meme...

E no natal, receberemos algo plastificado e industrializado, onde até mesmo o cartão não foi feito a mão, até seu nome é capaz de ter sido digitado, e o presente foi sugestão da vendedora para alguém que “gosta disto e daquilo”, e seu sorriso será tão genuíno quanto seu desejo de estar tão perto de parentes que passam tempo demais distante para restar algum sentimento... Oh! Fomos condenados a moldes com funcionalidade e pouca naturalidade, fomos tão podados que aprendemos a crescer apenas no espaço que nos cabe. Não cremos em criação, em superação, agora ou é satisfação (momentânea), metas batidas, “objetivo” alcançado, não resta muito dos desejos e sonhos, eles foram condenados a caber em algum “paraíso” elaborado, roteiros de férias, pacotes e longas prestações...

Mas estamos imersos neste liquido viscoso e nocivo, veneno capitalista, de modo que já passou a constituir nosso modo de pensar e sentir o mundo, será que assim nascemos assim morreremos? Condenamos os primitivos e superados viventes de outros tempos, por quê? Não seria esta correria que diminui nossos dias, nos condena a adoecer e enlouquecer muito mais irracional que aquela pacata vida onde viver e morrer era tão natural quanto cada pequena coisa do ciclo natural? Como espremer entre as paredes de concreto nascer crescer procriar, comer, dormir, se o que nos é exigido é quase a busca de sublimar tudo, de ser um iluminado que a tudo renuncia em prol de uma lógica destrutiva e injusta? E o amor, a paixão, carinho, os sorrisos, as brincadeiras, os acampamentos sem pressa, as férias gostosas em família, o bolo dos avós, tudo isso foi excluído como perda de tempo! E o que realmente importa foi substituído pela eterna frustração, e ainda nos dizem que as cosias são assim mesmo! Buscaremos terapeutas que nos ouvirão e no fim dirão que o importante é aprender a lidar com as próprias questões, e nos “ensinará” a reivindicar, e a nos implicar com nossa realidade, mas não há como nos ensinar a sermos felizes! Nos deixaremos levar por pensamentos vagos, veremos muitos filmes comedia romântica e água com açúcar, fugiremos dos dramas e existenciais ( no máximo aqueles com final feliz apesar da reflexão), e fingiremos sempre que está tudo bem, até que nossas mágoas e infelicidades se transformem em cânceres ou ulceras...

Mas neste natal, vamos fingir mais uma vez que está tudo bem... Mesmo sem estar, nos desviando das sacolas, tentando ser pacientes, pensando na comida e imaginando como suportar os chatos (quase desconhecidos) que tem mesmo sangue que nós... Talvez se fizéssemos um jogo, ou uma brincadeira interessante, tentássemos conversar com respeito e cumplicidade, se nos despíssemos da desconfiança e medo, se amássemos como românticos, se deixamos o sorriso plástico por uma cara séria mas receptiva, e se hoje decidíssemos enxergar todos que passam por nós na rua, se víssemos a humanidade em cada pessoa...

Hoje proponho não uma mudança de alma, mas tirar um pouco da hipocrisia que projetamos no outro, mas que não vemos em nós mesmos... Hoje proponho que ligue seu computador e veja a tela como algo feito de vidro, plástico e luz e não como uma porta ou janela. Proponho que tire a lente que te cega e veja que sua vida anda virtual demais, seus amores comedidos e receosos, suas amizades com distancias seguras demais, seus abraços muito frouxos e seus beijos muito pouco calorosos...

Proponho que olhe no espelho e veja você! E pergunte, olhando nos seus olhos quem você quer ser HOJE, e não daqui alguns anos, pois estes anos que supõe podem não ser vividos por você. Mas o hoje, você tem...

T Sophie
Enviado por T Sophie em 23/12/2009
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