* E o Burro Viu o Anjo...

Lembro-me do frio que cortava almas

Num solitário e negro inverno

em meus ouvidos promessas doces

na voz que encarnava algum demônio assassino.

Nas ruas um pastor pregava

Sobre uma realidade que só existia nos porões da fé dos inocentes

Ainda sentia o aroma ácido do sangue

e o sabor fino de afiada lâmina.

Eram tempos de esperança aqueles

Sorrisos nasciam fáceis de transeuntes sonhadores.

Mas eu também sonhava.

Com o ressoar dos sinos e o convocar da assembléia

Era hora de construir um mundo de homens

Sem as ilusões de guerreiros adolescentes em suas calças negras e justas

O sagrado estava quase palpável nas camadas de vento.

Vagarosamente meu olhar procurava a alcatéia

E meus sentidos procuravam as vítimas.

“Não se arrependa ou chore” disse aquele anjo.

Enquanto envolvia meu corpo entre suas asas

“Você será minha mais doce blasfêmia”

Eu apenas aceitava enquanto secava minhas lágrimas.

Queimando por dentro

E pelo ar qual sonâmbulo celeste

O vapor úmido de batalhas vencidas e as campinas cheias de corpos.

Mas eu também despertava.

Para o asfalto com seus pequenos jardins embranquecidos pela geada

Para o mesmo ódio a doer como uma úlcera

o lábio mordido em ansiedade pequeno fio de sangue.

Anoitecedo.

Deixarei a janela aberta.

Lobos e demônios festejarão na penumbra sua canção mais tenra.

*Roubado de Nick Cave