Esquadrinhando as polaridades

Quantos ideais, quantos labirintos são necessários para se chegar na conclusão mais verdadeira possível? A de que somos um emaranhado de vontade querendo vir à tona, não importa quais forem os meios? Tira um pouco da graça da vida, é verdade. Aquela aura infantil, a inocência sublime, vai por água abaixo na correnteza da vida, e o que sobra são alguns destroços e algo a ser reconstruído.

Quando crianças, somos semelhantes à família que constrói sua casa em um grande morro. Lá eles são felizes, unidos e cheios de entusiasmo. Estão próximos do sol, da terra. Mas vem a tormenta, e com ela, a destruição. A partir daí, perde-se o brilho de outrora, a casa desbarranca, sobram os entulhos e a revelação vem à tona, nos dizendo o quão frágeis somos, e quão inocentes, embebidos no bem e mal de cada dia.

Pois bem, e por que não esquadrinhar um pouco o ''bem'' e o ''mal'' que nos causa esse torpor, e nos tira a inocência? Queremos fincar a bandeira afinal de contas, queremos olhar da montanha, queremos dominar. Isso não é novidade, Nietzsche já dizia. Só quero dar algumas contribuições à sua demolição centenária.

Não há nenhuma diferença entre juízes e bandidos, egoístas e altruístas, cristãos e pagãos. Todos, ao final, querem a mesma coisa. A diferença é como obter essa coisa: o poder. Oras, o que o ''bem'' representa? Um ideal vitorioso, nada mais que isso. É um ideal que persuade e propicia o bem viver, é a forma mais sutil e bela de dominação que o homem já concebeu. Já o ''mal'' é uma forma burra de dominar, pois corrói onde passa, como uma espécie de ácido ambulante. O ''mal'' é antiestético, pouco higiênico e sem senso de arte. O ''bem'', contudo, persuade e escraviza. A melhor forma de obter um seguidor é fazer constantemente o ''bem'' a ele. O agradecimento iria crescendo, e atingindo o nível da plena confiança, e assim ele trocaria favores assim que solicitado. A compaixão, a piedade e a caridade são a expressão máxima do modo requintado e sutil de escravidão psíquica que se estabelece no ''bem''. O bem é isso: troca de favores. É bem sutil, precisa ter olho de águia para apreciar o espetáculo maniqueísta e entender o que ele significa.

O ''bem'' é a máxima potência do bem viver e da auto-preservação. Propicia uma boa digestão, um bom sono e, sobretudo, uma dominação requintada. O ''bem'' é tão sutil que ele não permite que se descubra. Entre um sorriso, uma companhia, ele se esconde de modo ágil. O ''mal'' não, ele é franco, direto, bota o pé na porta e diz ''passa a grana ou morre''. É, sobretudo, recurso dos inescrupulosos, e sem discernimento para entender a supremacia do ''bem'', e sua utilidade.

Na verdade, o ''bem'' sempre vai prevalecer pelo já exposto. É um ardil, uma grande tecnologia psíquica da mente humana, é o jeito mais fácil e prolongado de manipular e, sobretudo, dominar. É como se fosse um contrato: eu te ajudo, você me ajuda, nós nos ajudamos. Por isso que quando a confiança é quebrada, o ciclo de ajuda mútua muitas vezes cessa, e só pode sobrevir a desavença e o distanciamento, ou o ''mal''. O ''bem'' é frágil: basta cutucá-lo que ele se transforma em algo maquiavélico. Vide relações passionais e familiares.

Quando uma parte interrompe a troca de favores, das duas uma: a outra parte também acaba com a ajuda, ou continua ajudando (leia-se fazendo o bem) para obrigar a outra parte a retornar ao ciclo de troca de favores. Esse é o ciclo do ''bem''. Combina com ''sociedade'' e ''troca''. Não à toa é uma moral altruísta que surgiu com as cidades e aglomerações de humanos em larga escala. Como conciliar essa coletividade com uma postura do ''mal''? É impossível, todas sociedades ruiriam, se assim fosse. Era necessária uma troca de favores para o bem viver. Era (É!) questão de sobrevivência fazer o ''bem''. A empatia é uma sofisticação do aparato altruísta.

Se eu entendo o outro e suas razões e o perdôo, muito provavelmente ele adquirá uma dívida de consciência e me fará o mesmo. "Faça aos outros o que queria que fizessem a ti'': é exatamente essa a idéia. Quero o meu bem estar, então faço o ''bem'' aos outros, e serei recompensado com o bem viver e a confiança de todos. Foi um longo trajeto do homem até aqui, e pouco a pouco nos demos conta da importância do ''bem'' para nossa evolução em sociedade. Não à toa a idéia de ''bem'' remonta à religião, desembocando em Deus, obviamente. Deus é a figura arquetípica de ''Senhor'', de algo maior, causa de todas as coisas e propiciador das ''bençãos''. Quando algo acontece de bom na vida de um religioso, acontece ''graças a Deus''. Quem, mesmo ateu, não falou essa frase? As Igrejas são o exemplo máximo do que é a troca de favores, da essência do ''bem'': seguindo o mandamento, fazendo jejuns, sacrifícios, enfim, seguindo um manual de vida, serei recompensado no além e aqui com as bençãos.

O ''mal''. Pois é. Ele é rude, nômade, bárbaro, auto-suficiente. Nos assusta pois ele é ermitão e anti-social. E ele não hesita em destruir para impor sua vontade. Prescinde dos outros, e daí deriva seu erro. A sobrevivência não é possível sem se estabelecer a troca de favores. possível até seria. Mas não propiciaria o bem viver. O ''mal'' é terreno dos pouco reflexivos, dos que não percebem o ardil certeiro do ''bem''. O instinto prevalece sobre a perspicácia. Na verdade, o ''mal'' precisa do ''bem'' para sobreviver internamente. É o que se vê em gangues, quadrilhas, etc. Há a postura hostil em relação ao externo, ao diferente deles, mas camaradagem internamente. O ''bem'' requer um certo instinto coletivista, e no ''mal'' costumam adentrar os independentes, os que querem fincar a bandeira sentindo-se superiores e a sós em sua supremacia. O ''mal'' deixa explícito que quer dominar, e isso desagrada. Ninguém quer ser dominado de modo tão exagerado, isso é anti-estético. O ''mal'' encarna tudo o que repudiamos: morte, medo, dominação. O ''bem'' representa o que louvamos: vida, ajuda, família, amizade. É um conflito entre boa digestão e azia. É até meio fisiológico.

Duas possibilidades que se alimentam entre si. Não podem viver sem a outra. Estão emaranhadas em uma teia que não se dissipa. O ''bem'' precisa do ''mal'' para manter-se estável internamente. Ninguém agüenta uma mesma coisa sempre. Para isto existem os desvios em sociedade. Para reforçar um ideal. Se houvesse unanimidade, e o ''bem'' prevalecesse soberano e sem nenhum desvio, ruiria por si só. Assim como o ''mal'' ruiria se só houvesse ''mal'' internamente. É de nossa essência lutar entre opostos.

Texto de 02/12/2008

Caio Almeida
Enviado por Caio Almeida em 20/11/2010
Código do texto: T2625976
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