Sociedade sem ajustes

* Eu me apresento pelo nome. Concedo dos dados o menos significativo. E faço de propósito, pois não quero que ninguém conheça nada muito profundo sobre a minha realidade.

* Deixo para os estranhos a imagem de um bom humor, o sorriso despreocupado, o semblante tão leve e embalado por uma pequena embriaguez. Mostrar pouca lucidez também é importante no processo de apresentação, assim ninguém poderá saber o que passa na consciência. A minha, por exemplo, é cheia de dúvidas e arrependimentos. Danificada pela saudade e o remorso. Quem terá vontade de conhecer um alguém tão desajustado?

* Ostento, portanto, muita calma e pouca preocupação. Dou minha opinião em assuntos graves, mas opino de maneira um pouco displicente para que assim não transpareça muita responsabilidade e não arranje confusão. Mantendo-me mediana. Geralmente as pessoas ficam satisfeitas em me conhecer. É sempre satisfatório conhecer alguém razoável. Porque alguém superior será elevado, estará acima de você. Isto provoca competições secretas, uma guerra silenciosa. E eu estou cansado demais para lutar. Já alguém inferior estará tão pateticamente por baixo que se tornará indigno de apreço. E eu estou exausto de ser humilhado. Mantenho-me, portanto, na média.

* Agora, se gosto ou não de conhecer as tais pessoas é mais difícil de dizer. Difícil porque nunca me lembro realmente delas. Não faço questão de conhecê-las além do disfarce. Tudo fica mais fácil de suportar quando escolho a bebida. Fica fácil de aturar as vozes, a prepotência disfarçada em cada sílaba... Ah! Todo aquele individualismo e arrogância. Então bebo e me torno indiferente com os seres triviais. Bebo e aceno, bebo e assinto, bebo e me desprendo das futilidades ditas nos grupos sociais. Não me faz diferença o que eles dizem. Não faz diferença porque assim como eles eu também não sou obrigada a conhecer seres desajustados.

* A gente tem que fazer estas coisas para seguir em frente. As obrigações sociais estão inseridas na vida de tal maneira que não há como fugir. Mas por enquanto há como suportar.

* Enquanto acreditarem que sou gentil e despreocupado, simpático e feliz tudo vai seguindo. Enquanto eu simulo eles fazem o mesmo. E todos nós atuamos tão bem que um finge acreditar no outro. É um fingimento sem fim! Bebem tanto que tudo fica mais fácil de lidar. Se disfarçam com tantas máscaras que mesmo sem escapatória dos encontros sociais, há alivio ao lembrar que teremos meio de nos embriagar e teremos meio de nos suportar. Tudo isso graças à representação. E assim temos esta sociedade cheia de desajustados, que não se conhecem, não se gostam, conquanto se suportam.

Priscila Silvério
Enviado por Priscila Silvério em 09/01/2011
Código do texto: T2719214
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