E o dever?

Não sei se é apenas uma opinião pessoal, ou em uma perspectiva mais otimista, um pensamento partilhado por poucos, mas me parece que o brasileiro (tomado em sua maioria, não na totalidade) é um perito em muito cobrar dos outros (do governo, das autoridades, do chefe, das pessoas, dos pais ou filhos) e pouco exigir de si mesmo.

Pode ser um ranço oriental que venha comigo de leituras espirituais e filosóficas, mas creio que antes de cobrarmos, devemos fazer nosso quinhão diário, ou como diria Confúcio: "preze pela coerência entre discurso e ação". Percebo, no Brasil atual, uma proliferação de pequenos direitos e o esquecimento dos deveres. Todos querem seus pequenos confortos garantidos, mas poucos ou quase ninguém está disposto a ser um agente cidadão no local onde vive, como nos ideais gregos, que tem um senso de dever para consigo, seus familiares, amigos, e desconhecidos de uma mesma comunidade ou desconhecidos globais.

Não vejo diferença nas condutas públicas e privadas no sentido da ética. Ser respeitoso no trânsito, no convívio dentro de casa, no ônibus, no trabalho, nas escolas e faculdades, não coadunar com "jeitinhos", não colaborar com propinas e favorecimentos: tudo isso é um conjunto de pequenas partes inseparáveis de um mosaico, que forma a totalidade da ética de conduta de uma pessoa.

Eu não sei até que ponto o brasileiro sabe que vive em uma democracia, pois vota e se esquece em quem votou, paga impostos mas não cobra adequadamente posturas éticas dos governantes (apenas se indigna enquanto dura o noticiário). É quase como se, por estarmos em uma democracia representativa, isso desobrigasse o cidadão de pensar em política de fato até as próximas eleições, ou de dois em dois anos. "Eu votei, eu pago meus impostos, eu trabalho": me parece que esse é o mantra do brasileiro que "tira o seu da reta", eternamente adiando sua responsabilidade como cidadão.

Os árabes (vide egípcios, tunisianos e líbios), apesar de suas histórias ditatoriais e monárquicas antiquíssimas, estão forjando suas próprias democracias. Mesmo exemplos antigos, como o dos americanos na guerra de independência, ou dos franceses e ingleses contra o despotismo monárquico, dão-me a convicção de que a democracia deve surgir do povo e com a organização do povo. Poderiam até questionar-me: "Mas na Inglaterra e França não foi uma revolta burguesa?", ao que responderia: "E de onde vieram os comerciantes, senão do povo?".

No Brasil, parece-me que jamais o povo conquistou algo de fato, e sim que nos permitiram algo. Os portugueses permitiram nossa independência, a princesa Isabel e os donos de terras permitiram a abolição da escravidão (principalmente quando perceberam que poderiam importar mão-de-obra européia assalariada), os imperadores permitiram a criação da república, os militares permitiram a democracia. Pode ser que esteja cometendo injustiças contra poucos que verdadeiramente lutaram por suas causas em nossa história secular, mas no conjunto é a impressão que fica. Vamos empurrando nossas cidadanias com a barriga e sempre esperando que alguém faça por nós o nosso quinhão como cidadãos e seres humanos.

Sendo assim, jogamos lixo nas ruas porque terão garis e catadores para limpar, poluimos a atmosfera, as águas e as terras porque pensamos que recursos são infinitos e temos direito sobre a natureza pela lei do mais forte, desrespeitamos motoristas, pedestres e ciclistas quando dirigimos porque nosso tempo é curto, nos indignamos com políticos corruptos apenas porque pagamos impostos e não pela vileza do ato em si ("É o meu dinheiro!"), tratamos mal nossos colegas de trabalho porque temos prazos a cumprir, e assim forjamos nosso país, o Brasil, desde 1500 "deitado em berço esplêndido", e esperando ser o país do futuro com um povo estagnado moralmente e culturalmente.

E aí, temos três vias distintas: ou lamentaremos como Rui Barbosa ("Tenho vergonha de mim") por um dia termos tentado exercer nossa cidadania em um mar de indiferença, ou reclamaremos de tudo e de todos, exigindo muito e fazendo pouco, apenas em epifanias repentinas e de curta duração de consciência cidadã, ou, por último, podemos nos espelhar nos que jamais desistem, homens e mulheres que foram íntegros até o último suspiro de suas vidas e aqui citaria alguns: o russo Andrei Sakharov, o chefe tibetano Dalai Lama, o grego Sócrates (apesar das dúvidas quanto a sua existência), o italiano Maquiavel (sim, porque ele lutou até o final de sua vida pela unificação italiana), o chinês Confúcio, o judeu Jesus e as milhões de pessoas anônimas pelo mundo que, apesar de "tanto verem triunfar as nulidades", exercem sua cidadania por convicção, e provam que um povo forja a si próprio a partir das posturas de cada um.

Caio Almeida
Enviado por Caio Almeida em 23/03/2011
Código do texto: T2866735
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