Tragédias cotidianas

* Por muito tempo o mundo se resumiu em minhas idas e vindas a você. Eu era curto, cego, limitado. Agora não. Quase não lembro teu rosto e sou cercado pelos anônimos tristes, as pálpebras parecem pesar em cada aspecto, vejo a dimensão que me cerca.

* As minhas andanças são outras, rumos determinados e que me assolam os pés. Mas sigo os mesmos caminhos fielmente, dia após dia aguardando meu ônibus com a expectativa de uma vida mais digna. Não penso mais em carros grandes e de luxo, mas ao menos num assento enquanto pago mais do que posso na condução. Os que me cercam também estão na luta. Para eles isso começou há anos. Sou principiante, não me levam a sério, não me dizem para desistir nem prosseguir, apenas ignoram. Não creio que façam por mal, mas por desatenção. Seus olhos exaustos me provam pouco sono e muita descrença. Nessas expressões que me rodeiam não encontro tua saúde, tua disposição, tua fonte inesgotável de energia e força. Lembro como me preocupava se tuas bochechas descoloriam e se teus lábios se mantinham retos, sem risos. Qualquer alteração em teu humor usual me causava um enorme transtorno, perturbações que podiam durar horas ou dias, dependendo de você.

* Agora minhas preocupações estão em outros pontos. Mais prementes e explícitos. O que me perturba é a correria e as agressões. O idoso que serei um dia e que é esquecido por todos. A pouca educação de crianças, não pensam nos livros mas na fome que maltrata o estômago. E a mulher que não teve informação nem coração, largou o bebê no lixo de forma displicente. Mulheres que não são mães, senhores mal tratados, juventude desiludida. E os grandes, os ricos, os que deveriam dar proteção abrem mão de tudo e esquecem seu país para outras férias européia. As urgências e negligências da sociedade me atingem. As tragédias do dia a dia implodem em minha mente e fico abismado por lidarmos com as situações de modo rotineiro. Não podemos dar muita importância ao caos e as desordens porque nossa própria vida está em constante conflito, temos nossas crises particulares a administrar.

* Sei que já é comum, é uma pena mas é comum. Ainda assim não posso olhar ao noticiário que distribui roubos e assassinatos, que denuncia nossos políticos corruptos e conta do trânsito e da fome como fatos irreversíveis. Eu tento falar e gritar, tento argumentar. Mas a pressa, o atraso e a conta vermelha no banco impedem que os ouvidos se dediquem alguns minutos. Ler nem pensar. Nem mesmo você, a quem eu insistia tanto, empurrava páginas bem escritas que tuas mãos desprezavam gentilmente. Você dispensava, com frequência, uma boa leitura. Mas, em um caso isolado, recordo da curva de tua sobrancelha analisando relatos teóricos; números e gráficos que me pareciam tediosos, mas você demonstrava interesse e curiosidade, era de uma inteligência que mais combinava com a destreza, aos romances e poetas não dava chance.

* Também não me dava oportunidades de elogiar, de chegar mais perto, de abandonar a penumbra das festas e me dirigir às luzes que te envolviam. Lembro dos teus movimentos como em uma dança e você era o principal no palco. Todos ficavam deslumbrados. A plateia a qual pertenço agora é outra. Revolta e contida, não querem aplaudir mas não sabem como vaiar. Apenas assistem o espetáculo decadente que suas vidas se tornaram. E o pior de tudo, pagaram pelo ingresso. Quem está ali no alto, em foco, em cena? O dinheiro e o consumo, o descaso com nossa estrutura frágil.

* Eu, por outro lado, tenho ficado mais forte. Venho me recuperando de teus abandonos e esquecimento, não giro mais em sua volta. Teu sorriso deixou de ser meu drama pessoal, agora vivo e respiro as tragédias cotidianas. Com certeza elas dão mais motivo para melancolia, mas me abrem os olhos. O mundo não é mais limitado em teus dentes e ombros. Há toda uma dimensão que me cerca e estou imerso nesse cenário que me torna passível e incapaz de agir; me deixa doente e triste, como se eu também não tivesse mãe, nem dinheiro ou esperança, como se eu próprio fosse jogado no lixo com displicência.

Priscila Silvério
Enviado por Priscila Silvério em 11/05/2011
Reeditado em 20/05/2011
Código do texto: T2964102
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