O coletivo de cada um

* O céu que paira aqui é diferente do que está suspenso há alguns quilômetros. Enquanto eu escrevo com vista azul e ampla, uns enxergam o asfalto, outros a fumaça, muitos a corrupção.

* Enquanto quatro paredes seguras me cercam, muitos têm uma arma apontada na cabeça, crianças são tratadas com violência, maridos agridem suas mulheres. Algumas amam, outras se declaram, muitas choram, sorriem, trabalham para alimentar seu cão de raça ou seus oito filhos.

* Mais um trago, outro estrago, alguém acaba de morrer nas calçadas inseguras enquanto uma vida nasce e é recebida por ternuras. Médicos e policiais em momentos decisivos, mendigos agredidos... Outro ônibus atrasa, o metrô para, greves e protestos, o salário é furtado, os cinemas lotados. Jovens estudam, namoram, se drogam.

* Assinam novas leis que vão comandar minha postura, enquanto isso a senhora costura e o empresário fatura. Um gole de água, dois de conhaque, esparramam champanhe e clamam por água. A conta veio alta, o trânsito me atrasou, é dia de vencimento mas o banco já fechou.

* Você compra um agasalho, eles tremem na sarjeta, eu fecho a janela para esquentar, eles rezam para a noite acabar. Seis da manhã e sai o pão quente, engole o café, rotina amarga e deprimente. Mais um prédio se ergue, relacionamentos desmoronam, a demissão inesperada, a contratação comemorada. Aulas de ciência, matemática e português. Uns podem se educar outros só aprendem a traficar. Beijos, tapas, gentilezas e gritos. Buzinas que calam pássaros, fumaças que apagam nuvens.

* Árvores são derrubadas, a fome está matando, enquanto teu cartão parcela, o imposto continua nos explorando. Chega o domingo. Sem comércio, sem vontade, sem acesso. Futebol, vitória, conquista e disputa. Hoje é dia de pipoca, corrida e luta. Que importa o ministro roubar se meu time vai ganhar?