Nossa passagem: não perpetua nem comove

* "Não existe reversibilidade. Nunca mudou e não vai mudar." Foi exatamente isso que a boca de batom vermelho, acompanhada por um blush forte nas bochechas e passos concisos pelo salto alto declarou. A aparência da mulher e de seus parceiros de trabalho traziam várias suposições e apenas uma evidência: classe alta.

* Eu apenas passava. Por coincidência na mesma rua, com meu tênis desgastado e o relógio comprimindo o pulso. Eu ia esperançoso e atrasado para mais um dia de trabalho, pois em cada um tenho crença de realizar uma produtividade melhor, trazer mudanças relevantes não só a minha empresa, mas algo que acresça aos demais, que edifique o meu espírito. Minha fé se abalou com a declaração da senhorita. Diante de uma manifestação pessimista pude notar como nossas ideias são frágeis e nossa desilusão enorme.

* Eu apenas passava, mas duvido muito que as mudanças citadas seriam sobre nossa sociedade atual, sobre a falta de transporte que faz trabalhadores disputarem espaço e se exaltarem. Também não devia se referir ao sistema precário de saúde, que emprega médicos antiéticos e acumula dívidas e doenças, pessoas que esperam e morrem nas filas. Pelo tom de voz e a descrença a frase jamais estaria relacionada com os nossos idosos, que assistem os reajustes na aposentadoria e os desajustes em seus netos.

* Foi apenas uma frase jogada no ar, que atingiu meus ouvidos e se acomodou em todos os setores. É incrível como as palavras combinadas contextualizavam com o pensamento de muitos. Ninguém acredita mais. Ninguém está disposto a lutar por causas esquecidas. Ninguém corre pelo centro pregando a importância da educação. Os que tentam são ignorados, dispersos, esmagados até terem suas mentes reduzidas em uma espécie de fumaça - e, como nós sabemos, as fumaças são tóxicas e nocivas. É isso que acontece com as ideias de oposição: querem causar a desordem e por isso devemos combatê-las, assim respiramos melhor. Eu apenas passava enquanto o homem gritava a plenos pulmões exigindo paz, do outro lado da rua a polícia se apressava discretamente...

* O governo é bom. O governo é gentil, preocupado e bondoso. O governo me dá pão e diversão, sabe do que eu preciso. Enquanto mascaram a corrupção ficamos aqui, cumprindo com impostos de valores altos e discutindo possibilidades em vozes baixas, com medo de sermos os próximos reprimidos. A ditadura já foi mas ainda ditam o que devo consumir e acreditar, como cuidar de crianças e se devemos ou não fumar. Eu apenas passava pelas ruas chiques e pobres, podendo ver classe alta, média e baixa. Todos chegam a uma concordância: não vai mudar.

* Eu me abstenho. Meu coração seca lentamente por saber que não tenho forças para mudanças. Por saber que não chegaremos aos saltos altos, viveremos apertado no ônibus, sufocados por vozes que não falam por nós e não escutam nossas preces desesperadas. Seremos sempre o resto, a massa, os outros. Abandonados e aglomerados. Meu coração seca por lutar em vão, por saber que nós apenas passaremos.

Priscila Silvério
Enviado por Priscila Silvério em 19/06/2011
Código do texto: T3045354
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