ESTRANHO TEMPO EM QUE VIVEMOS

Num tempo em que o ganho material é posto acima até das pessoas, preferi manter os seres humanos, o bem-estar, a felicidade e a paz como prioridade primordial, negando-me a viver sob a opressiva ansiedade que suportam meus contemporâneos nessa contemporânea impetuosa busca por posses.

Neste tempo em que os interesses pessoais são postos acima dos comuns até mesmo por pessoas empregadas no preservar os interesses gerais, abri mão do meu direito de glória e promoção pessoal em bem de fazer um amigo, não importando se ele seria meu amigo, em bem de não instigar uma pessoa, tendo a humildade de reconhecer as qualidades do seu trabalho em vez de me apegar a detalhes legais para promover um inquérito em promoção meu orgulho próprio dando lição em alguém.

Neste tempo em que as pessoas passam por sobre as outras sem se importar quanto vão destruí-las, não fui contaminado com a pérola filosófica de agora que dita que tenho que ter pena é de mim mesmo. Eu posso me defender, mas a convivência e a paz precisam ser defendidas, não por imposição, pois a imposição é que as tem destruído. Impondo-se é que nos combatemos mutuamente.

Neste mesmo tempo em que por pouco se entra em demanda para conseguir reconhecimento e indenizações até mesmo de vizinhos, amigos e parentes bem chegados, preferi continuar achando que a amizade e cordialidade são o bem mais precioso que se pode adquirir, então abri mão de muitos direitos que mais servem para produzir contendas e ressentimentos. Jamais me alegrei em fazer baixar a crista a quem quer que fosse, pois dói em mim a idéia de humilhar alguém. Pessoas, autoridades e governos, porém, não se privam disso, pelo que abusam da autoridade, cometem atrocidade, fazem injustiças, condenam e matam pessoas unicamente para não voltar atrás, para não ceder à humildade de admitir que erraram e que erram.

Neste tempo em que se obrigam por lei o reconhecimento da própria soberania, escolhi promover minha soberania conquistando a amizade das pessoas, o respeito e admiração de tantas quantas for possível, em vez de impor o respeito, pois não há honra no respeito imposto. Ao contrário, o ter que impor-se é uma boa prova de que não se fez por merecer. O respeito merecido brota espontaneamente.

Num tempo em que se tornou comum impor-se o respeito em quebras de braço judiciais, preferi conquistar as pessoas por respeitá-las e ser-lhes simpático, demonstrando interesse por suas vidas, suas histórias e assuntos, sabendo entender suas mazelas, compreender suas razões e oferecendo-lhes tolerância a falta de entendimento pelo que muitas vezes algumas agem desastrosamente.

Num tempo em que a misericórdia, o entendimento e a cordialidade cederam lugar a exaltadas contendas, decidi que o sentimento das pessoas, que o estar bem como meus semelhantes é mais importante que tudo e cada um deve dar voluntariamente o primeiro passo em favor da harmonia e paz e todos devemos estar dispostos a pagar a parcela devida do preço para isso. Todos querem paz, mas dificilmente alguém dá o primeiro passo, especialmente quando esse passo implica em não revidar, não pagar o mal com o mal. Todos, porém, não perdem a vez de dar lição em alguém.

Num tempo em que as pessoas permutam a amizade por pequenas e grandes dívidas, e muitos cobram até com a vida dos devedores, preferi abrir mão de muitos créditos em vez de fustigar pessoas já penalizadas pelos revezes da vida e por uma economia impiedosamente predadora e indiferente. E descobri que mesmo todos os valores que perdoei não me deixaram mais pobre e, tampouco, deixariam mais rico. O que consegui, ao contrário, foi manter minha serenidade e saúde, mantendo também muitos amigos e alguns deles me retribuem quando menos espero e sei que outros não me abandonariam mesmo na pior situação. Mas, se me abandonarem, ainda assim seguirei feliz, pois jamais promovi a infelicidade de nenhuma deles por avareza e mesquinharia.

Dispus meu trabalho profissional em favor da sociedade, em bem de pessoas necessitadas e não-necessitadas e em bem de minha projeção profissional num tempo em que se cobram até por informações e favores para os parentes, quanto mais para conhecidos e estranhos. Sempre acreditei que um trabalho feito com amor, mesmo que de graça, rende outro trabalho e que o simples sorriso de gratidão já é um grande pagamento, embora aparentemente não encha barriga, mas a melhor propaganda é aquela que sai do coração satisfeito, que é feita com sincera gratidão. Tudo isso é muito estranho neste tempo.

Num tempo em que se pisa nos princípios e humanitarismo em bem do ganho e sustento familiar, nesse mesmo tempo em que o ganho da sobrevivência justifica atividades prejudiciais as pessoas e a sociedade, abri mão de um emprego legal do ponto de vista da lei humana e cheio de vantagens, numa empresa altamente paternalista, para não cooperar com o alcoolismo que sei que é o maior mal social de todos os tempos, que destrói indivíduos, seus cônjuges e filhos, bem como muitas pessoas em acidentes de todos os tipos. Muitos me disseram, porém, que de nada adiantava meu esforço, pois se eu não fizesse outros fariam. Ainda assim, jamais tive dúvida de que melhor foi fazer minha parte e ser moralmente correto em vez de só legalmente.

Num tempo em que se adverte com castigo e se impõe penalidade sobre penalidade, quando as mais brilhantes jurisprudências só reconhecem o corretivo da hostilidade, preferi dar crédito ao dizer de Cristo de que o perdão é mais eficiente, produzindo verdadeiro arrependimento e melhoria das qualidades dos indivíduos. Todavia, neste tempo perdão é fraqueza. Todos o querem pra sim, isto quando reconhecem seus delitos, mas para os outros o melhor corretivo é sempre o sofrimento.

Num tempo em que Freud incutiu na mente da maioria das pessoas que tudo podem e que nada lhes pode ser negado e, olhando unicamente para dentro de si mesmas, cada uma dessas pessoas exige dos demais seus direitos e bem-estar, muitas vezes preferi ceder a vez, abrir mão da exaltação e glória, bem como do próprio bem-estar, abrir mão das vantagens e direitos pessoais em bem de outras pessoas, em bem de quem está em desvantagem, em bem da cordialidade, em bem de surpreender positivamente alguém, em bem da paz, em bem da amizade e da harmonia com pessoas conhecidas e desconhecidas, pois para mim todos são merecedores e os direitos e bem-estar somente serão respeitados se cada um decidir voluntariamente promover e produzir tais coisas em bem do semelhantes em vez de exigir que os outro lhe façam. Numa sociedade onde todos são voluntários, todos recebem os beneficiados da voluntariedade dos outros. Numa sociedade, porém, onde as pessoas mais sabem exigir dos outros do que fazer voluntariamente sua parte, ninguém jamais cumpre seu dever e ninguém usufrui da voluntariedade de ninguém. E estamos tornando nossa sociedade cada vez mais assim, pois somente fazemos algo se devidamente recompensado, se satisfatoriamente remunerados. E assim somos uma sociedade se dividindo cada dia mais e se tornando cada dia mais fraca e manipulada.

É esse tipo de sociedade que produzimos, onde uns impõem penalidades sobre penalidade contra os outros; onde se criam leis para reprimir os erros alheios, fazendo-se tudo para esconder os próprios; onde os ricos vendem roupas usadas e badulaques em desuso para os pobres; onde destrói-se alimentos para aumentar os preços; onde paga-se salários exorbitantes pela lealdade de uns poucos ditos defensores da sociedade e leis, enquanto remunera-se vergonhosamente o trabalho árduo e produtivo da maioria; onde se enriquece à custa das demandas e querelas alheias; onde se faz carreira sobre as queixas do povo, etc.. Esta mesma sociedade onde o menor entendimento e concordância demandam tribunais caros e penas desproporcionais, é justamente a sociedade que, em colapso, declina para o caos. Embriagados, porém, pelo orgulho, envolvidos e absorvidos nessa orgia materialista e soberania pessoal, muitos de nós, cada qual com os olhos unicamente em si mesmo e cegados por essa crescente onda de auto-piedade e soberania exacerbada, achamos que construímos uma sociedade mais justa porque inauguramos a sociedade do denuncismo e das leis até para o respirar. Leis para garantir que o que os ricos tiram dos pobres não lhes será destituído; leis para defender os filhos dos seus pais; leis para livrar os alunos de seus mestres; leis para defender o orgulho e obstinação de uma geração desobediente, insolente e impetuosa; leis para defender as pessoas daqueles que as censuram porque querem seu bem. Enfim, leis para coibir as pessoas de bem; leis para controlar os outros.

Que tempo estranho este! Que doença letal nos contaminou? Quanto tempo ainda sobreviveremos com esse tão estranho e individualista senso de justiça? Quanto tempo até que as pessoas não mais suportem essa mútua instigação; esse autoritarismo fraterno?

Wilson do Amaral