De quem somos.

De quem somos.

Muito me intriga quando eu ouço alguém dizendo algo assim “ah! mas ele é mau, por isso faz essas coisas”. Concordo em um ponto com essa afirmação, já noutro eu discordo. Vamos a eles.

Começo pela idéia que tenho em comum com a frase. Ela diz que o sujeito é mau, por isso pratica maldade. Dessa lógica eu discordo diretamente, mas concordo com seu fundamento. Aqui se pressupõe que a pessoa seja má antes de fazer a maldade (eu discordo), mas também diz que a pessoa é presa pelo que ela é (aqui eu concordo).

Ninguém escolhe ser o que é. E antes que algum incauto já comece a vociferar contra cheio de achismos, explico-me. Havia o tempo em que o pensamento religioso tinha que dar-nos a opção de sermos quem somos para podermos ser julgados. Tínhamos, então, que ter o livre-arbítrio. Aquele mesmo, cuja a opção era ser bom (seguir os mandamentos) ou ser mal (não observá-los). Mas em nenhum espaço, pela lógica da coisa, podemos ser bons porque queremos. Se com minha fé acredito ferrenhamente em Deus e quero por isso praticar o bem. Temos o problema clássico da vontade. Para sermos bons não podemos fazer o bem por interesse. E fazer o Bem só porque cremos em Deus é já sinal de interesse, o mais particular de todos.

Creio também que muitos vão falar que a coisa não é assim, para eles eu deixo a consciência de cada um, não estou aqui para julgar. Mas quantos praticam o bem sem alarde, sem alegria pela recompensa, sem interesse no bem estar dos outros (que acaba sendo de tabela o seu próprio). Enfim, para a filosofia cristã, ou qualquer uma religiosa, fazer o bem é de todo inútil, já que não podemos querer fazer o bem, podemos sim, querer a salvação eterna, por isso fazemos o bem, o bem sempre é um meio, nunca um fim.

Creio-me muito relutante em aceitar esse pensamento, pois ele pressupõe que uma pessoa já nasça assim ou assado. Ser ruim antes de praticar maldade é o cúmulo. Porque? Por que daria ao praticamente da maldade um álibi perfeito. “Olha seu juiz eu sou mau então eu pratico maldade, não consigo ser bom”. Quem é mau como poderia não praticar maldade?

É a política de filmes medíocres com aquela moral rasa. O sujeito pratica maldades durante todo o filme (ou novelas) e no fim da história se redime fazendo uma ação boa. Ele continua mau. Aquilo nada mais foi que uma ação isolada. Afinal quem é mau só pode praticar maldade, e assim não é culpado. Boa lógica religiosa.

Já concordo com a opção de não podermos escolher quem somos. Nossa idéia de que podemos escolher dentre várias coisas vêm sempre depois da escolha. Ex. “eu poderia não ter feito isso”. Sim poderia! Mas já fez. E é sempre assim, e é sempre a falta de opção que provoca esse pensamento a posteiori queremos ter a sensação que temos escolha realmente pelo que fazemos, pensamos. Alguém que é mau pode querer ser bom. Sim ele estaria ainda indubitavelmente preso a querer ser bom. Ninguém pode escolher livremente o que faz, isso seria supor sair do seu corpo e de sua mente e em um estado totalmente imparcial escolher. E quem concorda que muitas vezes essa escolha seria catastrófica?

Sem sombras de dúvidas somos seres complexos, com fluxos mentais altamente intrincados e os formamos desde que somos gerados. Quem escolhe a infância, a educação e o meio em que vive? Bem e mal, relativismo por todo o lado. Julgamos algo bom porque o desejamos e não o contrário. Se desejo ser o rei do tráfico aquilo para mim é bom, já para o outro é ruim. Não há Bem supremo. Se houvesse, se Deus que é o Bem supremo existisse, que mais restaria para nós fazermos de bem? Tudo já estaria feito. Só nos restaria não sermos maus, rezar pela misericórdia divina e torcer para irmos para o paraíso.

Sim infelizmente vejo a coisa assim, que é como vejo acontecer. Ninguém é bom ou mau absolutamente, somente no relativo. E sim todos somos pessoas que não escolheram ser como somos. Fato. Você pode querer o que quiser e provavelmente não poderia querer de outro jeito. Materialismo, fatalismo? Sim, mas até o agora. Por sermos de uma aleatoriedade (no nosso ponto de vista) nunca extrapola para o futuro. Pois este não existe. Como também o passado. Só existe o agora, perdurando indefinidamente, a eternidade é aqui e agora, e só no presente.

Quanto ao ponto que discordo. Não é por alguém ser mau que pratica maldade (relativa). Nunca vi uma só pessoa fazendo mal a si própria. Ela pratica maldade porque com isso ganha alguma coisa, algum bem. Mas é justamente porque ela pratica maldade (repito relativa) que a julgamos má.

Chegamos ao ponto crucial da coisa. Aceitando-se que não há Bem nem Mal absoluto e só relativos, concerne a cada um julgar o que é bom, e aceitando-se que ninguém escolhe ser do jeito que é concluímos que não há justiça divina, não há igualdade para todos, não há moral rasa.

Praticar o bem por interesse é moralmente condenável, mas é melhor que praticar o mal, que é muito mais. Mas pergunta, dessa vez com a razão, quem é cada um para julgar o que é bom ou o que é ruim, o que é moralmente condenável?

Todo valor parte do ser humano, julgamos porque desejamos e somos o que fazemos. Mas só fazemos o que queremos, o que é diferente do desejo. Como disse não temos como querer outra coisa além do que queremos, somos presos por essa necessidade do real, esse fluxo que nos arrasta. Mas é o principio do desejo que torna tudo mais claro. Podemos desejar tudo, mas sabemos que não queremos tudo. Por quê? Pela razão.

O único denominador comum entre todos os seres humanos é a razão. E é por ela que devemos nos pautar. Por quê? Pois a razão não é condicionada por nada, a não ser o que é verdadeiro. Ela é nosso contato com o que é verdadeiro. E a verdade não tem moral. A verdade é amoral. Ou é verdade ou não. A verdade não julga. Mas nós sim. Sermos então pouco menos juizes e um tanto mais verdadeiros. A razão por não ser condicionada pelo desejo só se submete a ele se quisermos. Daí toda diferença. Desejo sobre a égide da razão (civilização), razão sobre a égide do desejo (barbárie).

Se a razão, que geralmente é razoável, pode contra o desejo e pode contra a barbárie, que sejamos mais razão e menos desejo. Quem somos? Deixo a cada um que se responda.

leandroDiniz
Enviado por leandroDiniz em 14/12/2006
Reeditado em 26/12/2006
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