[Descontinuidades do Olhar: os Entornos da Memória]

[Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. - "O Aleph - Jorge Luis Borges"]

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Várias vezes, várias... eu experimentei essa sensação que é a mesma que me provoca, sendo eu um físico nuclear, pensar num corpo celeste que, tendo orbitado em volta da Terra por um tempo, dela se afastasse para o nunca mais de infinitos anos-luz do espaço...

Mal consigo fazer algum eco às palavras de Borges, nem sei por que tento fazê-lo já que a ideia está toda contida na epígrafe acima, e não me pede repetição. Mas eu preciso... pois das vezes em que voltei e revivi aquela situação, eu tive vertigens, tive vontade de acabar com a minha vida ali, naquele lugar onde tudo se deu, onde amei, ou onde fui ridículo [... e quem se esquece das ocasiões em que foi ridículo?]. Mas então, abrindo os olhos, o universo já era outro...

Funciona, ou opera-se quase assim:

Numa certa época, a cada pessoa com quem convivemos, corresponde um lugar, uma cidade, uma rua, uma praça. E ali, nesse lugar, há certos entornos físicos [ou geográficos] que caracterizam e assinalam a época daquela convivência.

Algum tempo depois de perdermos aquela pessoa parceira de uma intensa relação — seja por que partiu, ou morreu, dá no mesmo — ao voltarmos ao lugar daqueles entornos, vemos que já estão modificados, transformados que foram pela ação dos homens ou da mera passagem do tempo... ou pelo simples desencontro, ou ainda pela descontinuidade mal percebida pelo nosso olhar...

Ainda há pouco, caminhávamos a passos esquecidos, descuidados... E então, paramos, suspendemos a pressa, e vemos aqueles entornos avivadores da memória com um aperto, um olhar de demorada nostalgia... Uma casa, um prédio, um bar, um poste de iluminação, uma árvore, velhas roseiras... e, por que não, até o mesmo mendigo, velho habitual de uma esquina, a quem, então juntos, demos uma esmola. Ou aquele cachorrinho latindo atrás das grades do portão de ferro de uma certa residência.

Corte brusco:

Então, de repente, a tristeza aperta mais, e o lugar torna-se absurdo, expulsa-nos, por que já não mais nos acolhe, e não nos quer por perto. E assim, apreendemos com toda a intensidade, a finitude da vida, a efemeridade das coisas...

[Penas do Desterro, 24 de novembro de 2011]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 10/12/2011
Reeditado em 10/12/2011
Código do texto: T3381548
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