Uma disputa contínua

Às vezes me analiso e constato que não me alterei em nada e, ao mesmo tempo, me transformei demais! Olho-me no espelho da vida e acho uma pessoa de idade adulta, forte, que briga (embora nem sempre vença) com meu lado manhoso, de menina. Talvez ela tenha medo de eu cometer neste instante todos os erros que não pratiquei (e mais alguns). Não que eu sempre tenha agido certo, bem ao contrário disso, mas errei muito pouco (embora, quando errei, foi pra valer) por ter sido medrosa e fugido de algumas situações que cingiam perigo. Quiçá atualmente esses erros estejam me fazendo falta, me exigindo, batendo em minha porta. Talvez hoje eu esteja pronta pra vivenciá-los. Quiçá até os deseje.

Reparei que havia no espelho uma vil rachadura, quase impossível de notar, até superficial, rasa, mas capaz de cortar e de retirar um pouquinho de sangue do meu dedo, que teimava em examiná-la. Automaticamente esse sangue me enviou ao passado e lembrei-me dos joelhos ralados pelas quedas que nunca tive: dos muros, das bicicletas, dos piques, das tentativas de andar de skate (brincadeiras que não brinquei)... Aquela porção do espelho me mostrava, ainda que um pouco deturpada, eu menina, sob o olhar de reprovação da adulta, apavorada, por um momento derrotada. Tal sentimento contrastava com o sorriso tão inocente e tímido da menina, que, mesmo desprovida das experiências próprias da infância, tanta segurança me transferia.

No fundo sou aquela menina que queria ter percorrido as vias descalça, arrojada, destemida, que "escolheria" justamente os momentos mais inaceitáveis, as datas mais festivas e os vestidos mais novos para saltar no barro! Boa demais a sensação de quebrar normas, de me sujar, de causar assombro nos outros! Em vez de aceitar apenas Pollyanna e as fábulas (surpreendentes) de Monteiro Lobato, achava bom mesmo ler, quase sempre escondida, Marquês de Sade.

Espanto-me com a facilidade com que o adulto que vive em nós, independente do sexo e da idade, vence da criança e insiste em nos querer arredar de cada poça, de cada aparente sujeira, fazendo-nos ostentar esse desleal sorriso de limpeza, que apenas traz peso e em coisa alguma liberta! Chega de escutar a adulta continuamente dizer que "por aqui pode" e "por aqui não". Desejo permitir a menininha vir à tona mais vezes, ainda que isso me traga dor, que me obrigue partir os pés nos cacos de vidro e manchar minhas roupas, meu corpo, meu nome, meu princípio.

Que essa garotinha saiba se impor, demarcar seu território e se espalhar pelo espelho, arredia que só ela, sempre fazendo caretas para a adulta, sempre mostrando a esta que não se intimida e não se permite derrotar... a não ser quando quer ver um pouco feliz a adulta, exibindo toda a sabedoria e generosidade infantis, infelizmente deturpados e tão vistos com aquele olhar de condenação!

Tatiane Gorska
Enviado por Tatiane Gorska em 15/03/2012
Código do texto: T3556616
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.