Um desassossego calmo na aparência
Quem tenta me decifrar tomando (de modo inútil) a minha aparente calmaria, se assombra (e perde tempo). Nem sempre o meu corpo reproduz o que me vai no coração (quase sempre desassossegado, preocupado) e isso não tem o significado de mentir; significa que às vezes minha alma gosta de se calar, de adormecer no escuro, e aí ela faz uso de cortinas, opressivas e obscuras. Nem sempre tenho vontade de deixar abertas as janelas, nem sempre deixo que a luz me leia... E que mal existe nisso?
Nessas horas penso que sei como se sentia Fernando, o desassossego em Pessoa:
"Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos. Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me, destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos, mas não eu."
(O Livro do desassossego -- Fernando Pessoa)