Cisne Negro

Não mais se via como antes. Antes era branco e límpido bordado o cinzel. Nas brumas noturnas, nos ares gélidos, suas penas transbordavam brilho. Era Cisne Branco por onde andava. Seus passos deixavam para trás ouro. Nos corações em que passava, trazia paz, pacificava. Era tênue. Era delicado. Era macio. Sabia amar.

Sempre sozinho e sempre para os outros. Suas penas e asas robustas viajavam o mundo. Doava ao mundo coisa que o próprio mundo nunca foi capaz de retribuir. Era alma e era jovem. Nunca se viu clarão assim antes. Era anjo de paz. Guerreava o mais que podia. Voava ares que mais o asfixiava que o fazia sobreviver. Era obrigado a se alimentar de fraudes, pesares e desilusões. Via da vida, vidas erradas, vidas complexas e vidas sem cor. Mas isso não o impedia de fazer dessas almas velhas, almas novas ressurgidas do amor e da paz de seus rios. Era realmente anjo. Mas um dia ele caiu do céu.

Quando seu coração foi desfragmentado, aos poucos o ar que antes inspirava dos outros, se tornou sua própria respiração. Nesse momento sentiu a tortura de carregar em si, tanta coisa podre dentro de ti. Ardia mais do que podia se idealizar, e as pessoas que ele restaurou um dia foram as mesmas que negaram ajuda no momento de sua dor. Elas nunca estiveram dispostas a beber aqueles ares ruins de ganso qualquer, tinham o seu próprio umbigo para cuidar. E foi diante de tanta angústia, e diante desamparo, o cisne ( antes branco ) começou a esburacar seu peito. Querendo de si arrancar toda essa dor, furou o mais profundo possível com seu bico afiado, até arrancar seu coração. O sangue que de lá escorreu, infestou todas suas penas. A dor que antes habitava o peito, agora transbordava para fora. Aos poucos o cisne foi se desfalecendo enquanto o escarlate cobria suas delicadas penas.

Quando o sangue se esgotou, não mais era branco. Uma cova se formou em seu peito. Se antes era bondoso, aprendeu a não mais confiar nos outros. Nem mesmo a servir amparos. O bom Cisne Branco não mais habita esse mundo escuro, se mesclou como ele sempre foi. Com suas asas escuras de sangue velho, ele voa pelo mundo. Não mais quis ser branco e límpido. O mundo lhe transformou em Cisne Negro, pois as cores do sangue seco não mais sairão de suas novas penas. Nunca mais.

Marçal Morais
Enviado por Marçal Morais em 06/12/2012
Reeditado em 06/12/2012
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