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sempre que vai chegando mais um ano novo, o nosso corpo continua.

mas nossa mente entende o fim de um ciclo e o começo de um. novo.

vim do azul, do rosa choque, do laranja berrante nas casas simples de onde ando. vim da ladeira que vira cachoeira no começo de março. vim do grito na rua dos meninos jogando bola. vim da tristeza que o dinheiro tatua nas pessoas por outros meios. vim do medo de andar em certas vielas e ruas. vim das casas tão próximas umas das outras que as famílias se tornam comunidade. vim em um tempo em que a comunidade se trancou na sala em frente a tv. vim do perigo da rua noturna e vazia. vim da inocência de enxergar a beleza em lugares já esquecidos. vim do vento forte que sopra na estrada e na luz que falta nos caminhos. vim em um tempo que a rua forma seguidores fiéis de estrangeirismos. vim dos desvios que fiz para tentar sair disso. vim em um tempo que a escola e o trabalho são apenas mais obrigações e compromissos, não uma vida. vim da maravilha e da dor de descobrir dia a dia a própria liberdade. vim da alegria que permeia os compromissos que eles carregam. vim do jardim em frente a minha casa, e da observação da minhoca sendo a minhoca, da flor sendo a flor. e deles sendo humanos. vim para viver. vim do acidente mais lindo da vida, e do transtorno mais milagroso dentro dos humanos. vim para transtornar, e ser transtornada. vim das pegadas fortes dos brancos na terra. vim do sangue e da dor de muitos grupos étnicos. vim e carrego nos olhos, no cabelo, na pele, no jeito de andar e de falar a dor e a graça de ser brasileira branca e periférica. vim do nordestino de cabeça diferente, do pé duro da terra vermelha, do gosto rural e do cheiro bom da chuva na roça. vim da tranquilidade de deitar numa rede. do sotaque arrastado. vim da família dilacerada pelo capitalismo. vim da dor causada por virgulino ferreira da silva. vim para ser peça sem encaixe, que se enquadra nos não encaixáveis. vim da única paixão, a de viver. vim e estou aqui. 22 anos. apenas vim. e minha memória descendente me diz "seu lugar é o mundo todo". vim para um mundo diferente de cor diferente. me puseram pra pensar e ser algo que, provavelmente, nunca serei. sou e apenas vivo a beleza de ser tudo e ser nada ao mesmo tempo, apenas humana. vim para fazer laços. para propagar. e para deixar rastros.

nunca fui mais eu mesma como ultimamente. "eu mesma" se traduz muito além do que corpo finita. sou tudo aquilo que toco e que vivo. sou todas as lembranças eternizadas em outras pessoas. sou a história dos meus antepassados. sou minha família. sou sem medo do ser. e eu percebi: sou infinitamente dentro de mim. grande demais para oralizar. e pequena demais para necessitar explicar.

vim para amar e ser amada.

Sabrina Vieira
Enviado por Sabrina Vieira em 10/03/2013
Reeditado em 24/08/2013
Código do texto: T4181574
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