O QUE RESTA DE MIM...
Mãe, faça batatas de azeite e vinagre
Olhos de criança fixos na resposta hesitante
As batatas ainda vai que não vai
Mas o azeite não era para todas as mesas
Nas ruas, algumas ruas, olhava-se em redor
E apanhava-se a laranja que alguém perdera no caminho
O que resta de mim são as memórias
Os tempos em que a rua era o único refúgio
Para o caudal de lágrimas que quase nos afogavam
Passaram os anos lacrados por etapas
Como comboio que pára em todas as estações
Herdaram-se os choros como prova de vida
Frutos de sensibilidades que vêm do berço
Hoje sou aquilo a que chamam homem grande
Que já não pede batatas, nem azeite ou vinagre
Mas que continua com as memórias vivas de outrora
Dos sonos sem sonhos
Dos sapatos que duravam uma eternidade
Das calças de ganga que era a roupa dos pobres
Sinto o corpo tremer de tanto ter vivido
Alicerçado nos anos que me ensinaram tudo
Dos amores e desamores
Dos abraços profundos
Mas também dos mal alinhavados
Dos beijos que me limitavam o fôlego
Das mãos que eram as algemas de outras mãos
A vida é um manancial de egoísmos fúnebres
Que nos empurra para o isolamento e a reflexão
Não há prédios, nem vinhas, nem especulação
O que resta de mim são as memórias
A herança que um dia lavrarei em silêncio.