O QUE RESTA DE MIM...

Mãe, faça batatas de azeite e vinagre

Olhos de criança fixos na resposta hesitante

As batatas ainda vai que não vai

Mas o azeite não era para todas as mesas

Nas ruas, algumas ruas, olhava-se em redor

E apanhava-se a laranja que alguém perdera no caminho

O que resta de mim são as memórias

Os tempos em que a rua era o único refúgio

Para o caudal de lágrimas que quase nos afogavam

Passaram os anos lacrados por etapas

Como comboio que pára em todas as estações

Herdaram-se os choros como prova de vida

Frutos de sensibilidades que vêm do berço

Hoje sou aquilo a que chamam homem grande

Que já não pede batatas, nem azeite ou vinagre

Mas que continua com as memórias vivas de outrora

Dos sonos sem sonhos

Dos sapatos que duravam uma eternidade

Das calças de ganga que era a roupa dos pobres

Sinto o corpo tremer de tanto ter vivido

Alicerçado nos anos que me ensinaram tudo

Dos amores e desamores

Dos abraços profundos

Mas também dos mal alinhavados

Dos beijos que me limitavam o fôlego

Das mãos que eram as algemas de outras mãos

A vida é um manancial de egoísmos fúnebres

Que nos empurra para o isolamento e a reflexão

Não há prédios, nem vinhas, nem especulação

O que resta de mim são as memórias

A herança que um dia lavrarei em silêncio.

Ângelo Gomes
Enviado por Ângelo Gomes em 08/07/2013
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