Construções

Santos. Caminhada na areia. Segunda-feira, umas dez horas da manhã. Tempo fechado e coração aberto. ("Toda caminhada produz um pensamento").

Aquele cenário dos prédios tortos, cujos topos quase se beijam, produzem em mim algumas idéias...acelero os passos, pondo fim à caminhada de quarenta minutos e com meus pés de areia, entro no salão principal daquele hotel elegante. Peço na recepção caneta e folha branca, não posso esperar pelo elevador que me levaria até o sexto andar.

Entro no bar do hotel, todo preto e vermelho, puxo uma cadeira e, ao som da chuva que inicia, começo a transpor ali tudo que se passou diante dos meus olhos, atentos e dramáticos.

Ouvimos dizer que os engenheiros dessas construções mal fundadas, por frustração, acabaram cometendo suicídio. A visão daqueles prédios de dez, quinze andares, se inclinando como um homem ébrio é realmente perturbadora, imagino o abalo que tal visão deve ter produzido naqueles anos das décadas de sessenta e setenta, à medida que aqueles vizinhos gigantes iam reinventando suas geometrias, conforme se aproximavam um do outro. No entanto, tal punição, de tirar a própria vida, nem teria sido necessária, pois hoje, quarenta, cinquenta anos mais tarde, inúmeras famílias ainda enchem os tortões de vida e o cenário que deveria ser apavorante já virou rotina, pois, como em tudo na vida, o olhar se acostuma.

Foram várias as construções tortas que avistei naquela caminhada, são mais de 80 edifícios nessa situação, quase todos habitados. Olhei bem para aquela orla, cheia de construções mal fundadas e por isso enviesadas e me identifiquei. Nossas vidas...

Aquela composição de edifícios cambaleantes, entre outros muito sólidos, se aproximam muito do que construímos para nós mesmos ao longo dos anos. Quantas construções mal embasadas não compõem uma vida? Quantos ¨prédios¨ não vão tombando com o tempo? relações que degeneram, amores que secam, projetos que se apagam, convicções que se abalam...

Cada vivência, cada percepção, cada erro e cada acerto, cada engano, cada encanto, cada paixão, cada ilusão, cada sonho, cada verdade e cada mentira que construo para mim mesma consiste em um prédio que forma a minha orla.

Confidencio à Santos: ¨também sou torta¨.

Existem em mim várias construções abaladas... mas são, também, elas que formam a paisagem da minha vida. Algumas são mesmo indispensáveis.

Coisas tortas, visões turvas, fazem parte do meu cenário. Algumas construções são incorrigíveis, outras precisam ser demolidas e começarem de novo, outras ficam lá a vida inteira, jamais se desmancham e acabam formando a percepção vigente.

Parei, mirei um deles, aquele que me pareceu o mais torto. Vi a cortina estampada atravessada pela luz do abajour, no canto direito uma mesinha com flores, na varanda uma senhora muito empenhada em limpar os vidros de sua porta-balcão, do seu prédio torto, mostrando pra mim que prédios tortos, assim como histórias tortas, têm vida, há sempre alguém que os habita, podem estar cheios de poesia. Vidas tortas em casas retas, vidas retas em casas tortas, tudo isso acontece. Os "tortos", aliás, por vezes pulsam mais, inspiram mais, são mais vivos, mais intensos, mais sinceros, são violentos, sobrevivem...é preciso enxergá-los.

A cada dia um novo prédio se levanta em mim, uns já começam tortos, outros bem firmes. Nem sempre posso interferir na construção: às vezes ela simplesmente se faz...e o olhar que se acostume.

Nanda Reis
Enviado por Nanda Reis em 07/10/2013
Reeditado em 07/10/2013
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