Porque sou frio

Ah esse frio da noite. Como começar a escrever sobre o que é apenas sensível e quase intraduzível em palavras? Pois estou tentando não apenas sentir que o frio dessa noite me sente, mas preciso que alguém no mundo saiba que estou tentando falar. Pois alguém necessita ouvir dizer que o frio também tem suas necessidades. E uma delas é encontrar não corpos que se eriçam ao pensar nele, mas a necessidade última do frio da noite é que saibamos que ele existe como um mistério dentro de nós.

Esse mistério louco! Através do qual o frio nos exige e somos exigidos pelo frio. Essa inquietação transparente que parece anunciar pancadas de uma chuva finíssima como o espirro de uma criança. Nada é tão absolutamente sensível como ter exposto o próprio corpo a essa loucura vazia e plena ao mesmo tempo. Em conseqüência disso nós a aspiramos à friagem neutra da tarde, quando o que realmente importa sentir – ah, o que realmente importa não é sensível, pelo menos nossas mãos não conseguem trazer à tona.

Pois como de um mergulho em mar gelado a gente fosse de súbito emergindo, e talvez porque ali mergulhamos para depois saber o que seja emergir de um lago fundo – nós olhamos o frio do lado de fora e vemos que ele surge da nossa vontade de senti-lo. E de aceita-lo com sua mão branca de silêncio que aperta a nossa dizendo: tens frio? E nós, que não temos as palavras certas, principalmente para o último momento, diremos: pode entrar. E ele entra. Vem devagar como uma náusea, mas depois revela o seu assombro místico – sua verdadeira face é revelada como sendo a primeira face a ser reconhecida dentro da noite. Então os braços grandes invadem. O frio não tem pele. Não é liso nem áspero nem fino: é frio apenas. Ele desce de cima e sobe para baixo. E não há contradição nisso. Nós é que nos acostumamos a crescer para cima e morrer para baixo. Mas talvez se experimentássemos o contrário nós nunca entenderíamos, pois tudo está sentado sobre o céu, e quando se morre é que se vai diretamente para o mundo. Entendeu? O frio nos entende. Ele é o de dentro da gente. É a camada extensa que ora chamamos de “silêncio” ora de “destino”. Mas tudo é uma coisa só. Até a nossa alegria é tão fria. Nosso espanto diante da noite. Nossa boca que ri até quando odiamos. E quando menos se espera já aconteceu: riu-se de espanto.

Sei que o que estou escrevendo é difícil de comunicar a alguém muito sensível. Cuja emoção é quente como um coração de bicho. Tenho que me comunicar de noite. A noite revela o frio, que revela a inteligência fria e o sábado com sua ociosa gelidez de descanso. Afinal não é para inteligentes que escrevo, pois os inteligentes estão trabalhando e não procurando farpas no escuro. Escrevo por mim e para ninguém. Porque sou frio.

Silvano Gregorio
Enviado por Silvano Gregorio em 07/04/2014
Reeditado em 07/04/2014
Código do texto: T4759234
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