O Homem do meio

Aqui estou. A dor que toma meu corpo é insuportável. Sinto meu peito rasgando-se a cada inspiração. A qualquer momento, eu sei, morrerei. Os cravos que atravessaram há pouco as minhas mãos agora já não incomodam mais. Minha pele deve ter adormecido devido a dor. Não consigo mais falar, o que me escapa da boca são apenas gemidos incompreensíveis. Gritei de dor durante as chicoteadas. Gritei de dor quando meus pés foram perfurados. Gritei de dor ao erguerem a cruz. Gritei até não poder mais. Até perder a voz.

Vejo as pessoas me olharem. O olhar de muitas delas exprime alívio. De alguns, pena. De outros, percebo um brilho de sarcasmo por verem um infame como eu finalmente pagando pelo que cometeu. Vejo os rostos de pessoas que assaltei. Reconheço o rosto de uma ou duas mulheres cujos esposos morreram após as surras que lhes apliquei. Algumas pessoas das quais levei tudo o que tinham. Era uma vida louca. Não sei contar quantos crimes cometi. E eis-me aqui agora, pagando por todos eles. Eu mereço.

Um jovem se aproxima da minha cruz e me olha. Eu o reconheço. Era apenas um menino quando invadi sua casa e tirei das mãos de seu pai todo o ouro que haviam conseguido com a venda da colheita de trigo. Há ódio em seu olhar. Ele mantém os braços cruzados enquanto me olha friamente. Deve estar pensando “Aí está a sua paga!”. Ele escarra e cospe ao pé do madeiro encurvado. Vira as costas e sai.

A quantas pessoas agora eu gostaria de pedir perdão. Ah! Como eu gostaria de poder voltar no passado e fazer tudo diferente! Quem dera tivesse tido uma boa educação, que tivesse ido à sinagoga ao invés de ir caçar passarinhos com os meus amigos! Quem dera eu tivesse escutado os conselhos de minha mãe! Quem dera tivesse um pouco de senso e aprendido a profissão que meu pai me quis ensinar. Mas fui rebelde. Preferi fazer o que achava correto. E aqui estou, condenado à morte, sem um fio de esperança.

Só agora é que percebo as cruzes ao meu lado. Não estou só. Há mais dois condenados comigo. Um deles tem uma horrível cicatriz no queixo. Não há ninguém perto dele. Nem uma pessoa sequer veio lamentar sua morte e condenação. Seu semblante, cortado pela dor, exprime raiva. O outro, por mais estranho que possa parecer, carrega uma cruz de espinhos na cabeça. Seria alguma brincadeira de mau gosto? Este eu conheço. Tenho certeza que já o vi. Sim! É ele!

É o tal de Jesus que algumas pessoas afirmavam ser o Messias. Eu mesmo o vi curar o cego filho de Timeu aos portões de Jericó. Lembro bem dele, porque eu estava nos mesmos portões, esperando um senhor que saía de jumento para viagem e eu o assaltaria. Lembro que Jesus passou por mim e me estendeu um olhar meigo, que me fez sentir tão envergonhado que saí dali. É o mesmo homem de quem ouvi falar que ressuscitou a Lázaro e a filha de Jairo. Que curou cegos, aleijados e leprosos. Mas o que este Homem está fazendo ali? Porque o crucificaram? Sendo o Messias, O Cristo, como o chamam, porque o penduraram ali?

Seu rosto está coberto de sangue. Seu corpo marcado pelas mesmas chicoteadas. O seu abdômen está partido ao lado. Que fizeram com ele! Ele não solta sequer um gemido de dor! Não abre a boca, apenas respira pesadamente seu último fôlego... O Homem ergue a cabeça, tenta alcançar os céus com o olhar. “Eloi Eloi Lamá Sabactani!” é o seu grito. De onde ele tira forças para gritar, eu não sei. Ouço uma risada sarcástica. É o outro condenado. Ele vira a cabeça para o Homem do meio... “Mas você não é aquele que diziam ser o Messias?” ele gargalha “Você não é nada!” Se contorce e ri ainda mais “Se tu és o Filho de Deus” ele ironiza “Desce daí e salva a ti e a nós também!”.

Como ele pode falar aquilo? Como pode desrespeitar aquele Homem que tanto bem fez a todas as pessoas? Puxo o fôlego... “Ora, cale-se! Eu e você merecemos estar aqui! Merecemos a morte! Será que nem prestes a perder a sua alma você se envergonha por todo o mal que causamos? Olha o nosso estado! Este Homem que aí está não merece estar preso nesta cruz, nenhum mal fez para que aí estivesse!” A dor me impede de falar mais. O esforço me faz sentir como se uma espada atravessasse meu corpo. Sei que não vou demorar muito a partir... Ergo o olhar e Ele me olha. O Homem do meio mantém sua cabeça apoiada sobre o ombro. O mesmo olhar terno encontra o meu. A doçura e bondade expressa em suas retinas faz meu coração enegrecido se envergonhar novamente, como no dia da entrada em Jericó.

Baixo a minha cabeça. Tenho vergonha de olhar para seu rosto. Num último esforço, abro minha boca, mas as palavras não querem sair... Suspiro... “Senhor, peço-te... Lembra-te de mim quando entrares em teu Paraíso...”

A dor aumenta. Sinto meu fraco coração render-se à morte, minha vista está escurecendo. Meu peito está pesado, não consigo mais respirar. É o fim. O burburinho de vozes e choros vai se dissipando. Minha hora é chegada... E em meio a dor, abro os olhos mais uma vez e vejo Aquele Homem ensanguentado me olhar. Seus lábios se abrem. Seu olhar lânguido e terno brilha... E eu ouço sua voz... “HOJE MESMO ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO...”.

Milene Gomes
Enviado por Milene Gomes em 18/04/2014
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