Escrevendo em cinzas

Posso vasculhar bem fundo, no âmago do que supostamente sou, dentro do que supostamente me faz ser, que sempre permanece a dúvida de algo que parece ainda estar incompleto, faltando um pedaço da narrativa...

Por vezes sou tomado da dúvida; enquanto procuro um cigarro na confusão de papéis amarrotados em que repousam pacientes textos inacabados, terminando por encontrar um velho maço amassado no fundo de uma das gavetas, debaixo de um livro que nem é meu e que provavelmente nunca terei a chance de devolver: Ainda faço realmente parte desta história?

Acendo um cigarro...

Confundo-me num composto de algo que quero, de algo que não consigo ou não posso ter, de algo que se assoma ao longe, na esquina de uma rua qualquer, ou canto esquecido de um bar, num lugar qualquer que não conheço enquanto sóbrio, mas no qual repouso os olhos e adormeço, envolto ao corpo de alguém que não é você.

Porque teu corpo está, agora, longe do meu que, agora, é outro que não aquele que está numa cama com lençóis úmidos de suor junto ao teu corpo que nunca conheci, que nunca entendi, que sempre desejei e que se desvanece porta afora enquanto um corpo desconhecido se apodera, agora, da minha cara, da minha roupa, saboreia do meu vinho e fuma meus disfarces, saindo também porta afora...

Que estranho te ronda e se serve do corpo e do mundo que um dia pensei ser meu, se esconde em meu sobrenome, sobrevive do seu suspiro, passeia por entre suas coxas e brinda em seu ventre num mesmo instante que se esvai em qualquer direção tomando rumos, com certeza, adversos aos seus? Aos nossos... Tudo tão estranho como uma insanidade pontual que ocorre a cada momento em que o meu corpo adormece longe do teu...

Dúvidas precedem dúvidas...

Termino o cigarro e tudo se envolve em fumaça à minha volta, entranha-se em minhas roupas, em meu corpo, cabelo, mãos e em tudo o que penso, fumaça que tem o seu cheiro e que se inicia no momento exato em que aproximo a minha tormentosa chama de lembranças ao seu leve, aromatizado e mal enrolado fumo, finalizando quando este se apaga nas nossas cinzas num cinzeiro sob a cama. Simples, fácil e etéreo no momento em que desaparece na alvorada, aos poucos, por entre os dedos trêmulos e apertados. No entanto, tudo tão sóbrio, tão vivo na certeza de que tudo se reconstrói em algo novo e diferente, como num novo dia, como num outro alguém que se conhece, como num novo fato ainda estranho ao corpo, como uns sapatos novos ou como um outro cigarro, prestes a ser aceso...

Ricardo Matta
Enviado por Ricardo Matta em 21/05/2007
Reeditado em 25/05/2007
Código do texto: T495190
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