Você pode estar certo

Você pode estar certo. Você pode estar errado. Somos soldados armados até os dentes com nossas certezas incertas. Somos feitos de dúvidas mas embalados em certezas que mascaram as dúvidas, simplesmente porque somos o preconceito em forma de ser humano.

Eu posso estar certo. Eu posso estar errado. Somos seres incertos de uma certeza absurda, apenas pela arrogância de nos acharmos melhores, e pela prepotência de termos a certeza que estamos no controle, revestidos que estamos pela soberba de encontrarmo-nos apenas de passagem para um mundo melhor. Justificamos a dor alheia como atalhos para a felicidade posterior. O sofrimento de agora é a certeza de um porvir de luz e eterna felicidade. Que melhor desculpa do que esta, para nossa desumanidade qualificada ou omissa, que melhor desculpa para algum deus que não atua pondo fim a isto.

Nós podemos estar certos. Nós podemos estar errados. Os preconceitos enraizados nos fazem absurdos ambulantes, nos dão a imagem e semelhança de um ser que nunca seremos, pois que o criamos apenas para nos iludir de nós mesmos. Nas contradições, somos aberrações humanas que mais parecem frutos de uma absurda incoerência, daqueles seres que possuem a certeza de serem coerentes com algum desígnio natural ou transcendente. Isto tudo porque nos falta humildade, e respeito sincero, na percepção de que somos apenas mais uma espécie que ocupou um nicho ecológico que a evolução possibilitou, nem melhor e nem pior do que as outras espécies, apenas diferente. Isto porque nos falta sensibilidade e compromisso pela busca, sincera e livre, das verdades, não minhas, não suas, não deles, e não necessariamente nossas. Não importa, ou importa quase nada, nossa percepção desta ou de qualquer verdade, importa sim buscar as engrenagens verdadeiras que povoam o submundo real dos fenômenos. Verdades factuais, sempre as percebemos no passado e de forma introspectiva e subjetiva, mas podemos não dar máximo valor ao percebido, e sim ao modelado, ao experimentado, e aos sinais que evaporam constantemente de tudo aquilo que realmente existe, independente do como o percebamos. Eu sei que não conseguimos, completamente, nos livrar da percepção e nem de nosso subjetivo, posto que somos seres subjetivos por excelência, e nosso contato com o mundo externo acontece pelas percepções, mas podemos abdicar de uma análise meramente superficial de nossas percepções, pela busca sincera e independente de uma análise crítica profunda, mesmo que o que nos espera ao final possa nos chocar, mesmo que venha contra nossos conceitos, ou nossas crenças, mas que revestidas de alguma racionalidade, e se possível coberta por experimentos de refutação, podemos fugir do lugar comum das aparências e dos desejos.

No geral somos convencidos e presunçosos que se sentem deuses, somos mais demônios em pele de santos, somos muitas vezes, e muitos de nós, monstros em corpos de animais, por mais que neguemos, ou não estaríamos aqui, eu e você, escrevendo ou lendo, e estaríamos sim em plena realização de uma revolta humana e social pela desconstrução de tudo aquilo que aqui está, e que foi erguido em nome de um falso amor, de falsos princípios de dignidade humana, costurados por interesses sub-humanos, reforçados por miséria social, e transpassados por preceitos místicos ou seculares que desonram todo e qualquer animal social. Uma sociedade construída sobre princípios de amor transcendental se perdeu pelo caminho, e haveria de se perder pois que o amor é imanente e não transcendente, infelizmente, creio que mesmo que fosse, nossa sociedade, erguida sobre amor natural e imanente sucumbiria também, pois somos em maioria uma miserável espécie que se crê imagem e semelhança de um deus, mas muito mais somos mesmo o demônio sob forma de belas palavras, sob imagem de templos de amor, sob desígnios misteriosos daqueles que se acham autoridades no saber, e verdadeiros interpretes da vontade misteriosamente escondida em véus de ganancia e poder.

O amor verdadeiro é tão maravilhoso que entendo hoje ser impossível de alcançá-lo em sua totalidade, creio que teria muito mais nos bastado apenas trabalhar, pelo menos enquanto não estivermos preparados para amar em totalidade, e em verdade, em uma sociedade baseada em respeito humano e coletivo. Entendo ser o respeito muito mais palpável à curto prazo, mas, infelizmente, na busca incerta de um amor perfeito e utópico, nos perdemos em uma sociedade desumana e excludente. Sou tão culpado como todos, aceitamos esta realidade, e perdemos a dor de algum sofrimento pela existência da dor do sofrimento alheio.

Somos culpados por aceitar, por sermos coniventes, ou por mera omissão, mas somos mais culpados por nos escondermos por detrás de boas ações, locais e muitas vezes pontuais e pouco sinceras, para nos eximir de culpa pelo que aqui está. O sistema que criamos, ou que aceitamos, é tão perverso que nos faz inúteis na percepção de nossa força de revolta. O sistema é tão maléfico que faz das pessoas boas, meros perpetuadores do que aqui está. Sua caridade, suas obras de assistência social, seus comportamentos de paz, fazem com que nada mude. A entropia tende sempre a crescer, a desordem tende sempre a aumentar, somente podemos interromper o poder da entropia da maldade humana com uma comprometida aplicação de energia e esforço, mas a falsa paz que convém ao sistema perpetua a inércia, e assim a entropia reina livre e poderosa. Tenderemos sempre ao descontrole e a desordem, e nós sabemos quem mais sofre com esta entropia crescente, o pobre, o miserável, o excluído e o abandonado. Você pode estar certo e eu errado, eles podem estar certos e nós errados, o caminho que escolhemos seguir pode nos levar a dignidade coletiva, entretanto eu, pessoalmente, não consigo ver isto, mas talvez seja meu preconceito falando alto, posso estar cego a beleza geral desta sociedade, posso estar sendo perverso para com a bondade humana... quem dera eu esteja errado...
Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 26/04/2015
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