Minha Espiritualidade

“Tudo aquilo que o homem ama e exerce apaixonadamente é que é sua alma, sendo esta tão diversa quão diversos são os próprios homens” – Ludwig Feuerbach

“O mais importante é vocês buscarem suas próprias respostas!” – Dr. Ellie Arroway

Uma das minha memórias mais antigas e que resiste ao andar do tempo com extrema avidez é a minha visão de uma página de uma enciclopédia velha, de capa verde, onde estava destacada uma imagem de Saturno, tirada por Cassini. Eu tinha por volta de sete ou oito anos e aquela foi a minha primeira experiência espiritual.

Nunca fui de acreditar – o ceticismo, com eventual falha aqui ou acolá, sempre forrou o chão minhas trilhas intelectuais. Contudo isso nunca me impediu de experimentar um sentimento que muitos adjetivam de “numinoso”. Em verdade, o assombro que a dúvida me traz (e não a Verdade) é o mensageiro mais digno de entregar a carta da espiritualidade. Assombro. Dúvida.

Já parou para observar o céu e procurar Saturno? Eu o fiz. Aprendi recentemente a achá-lo sem muitas dificuldades. Despendi minhas economias a fim de adquirir meu primeiro telescópio. A reação entre amigos foi de um espanto misturado com um certo nível de gozação; não entendiam a razão da compra e se entreolhavam indignados, mal sabem eles que pretendo comprar um dez vezes mais caro, algum dia. Uma experiência engraçada seria filmar suas reações.

E por que eles não compreendem? Por que se espantam? Bem... Responderei a isso rememorando alguns outros momentos de minha vida, tentando trazê-los a vocês da forma mais perceptiva possível.

Depois daquela primeira lembrança, a minha vida esteve forrada de experiências similares e vem aumentando cada vez mais as suas intensidades e frequência. Entre as mais vívidas experiências posso citar duas que são de extrema valia.

A primeira ocorreu ao assistir a “Cosmos: uma odisseia do espaço-tempo” (logo depois adquiri, animadíssimo, o telescópio) e me deparar com um indivíduo que até então me era desconhecido: Carl Sagan (Carl Sagan foi um cientista, astrobiólogo, astrônomo, astrofísico, cosmólogo, escritor e divulgador científico norte-americano com mais de 600 publicações científicas, e também autor de mais de 20 livros de ciência e ficção científica).

Muitos diziam a mim, e ainda dizem, sobre um certo homem que os inspira. Jesus Cristo. Bem, Carl Sagan não é nada parecido com ele até onde posso julgar, exceto pela singular capacidade que possuem, de formas distintas (muito distintas), de tocar a alma dos indivíduos.

Sempre foi dito a mim sobre tal homem, mas nada do que falavam jamais chegou próximo de me tocar de alguma forma, por centenas de motivos. Somos tão diferentes, certo? Todos os humanos. Era de se esperar que uma das marcas fundamentais da natureza, a variabilidade, operasse mesmo entre nossos caminhos.

Meu caminho para a espiritualidade é esse: a admiração do Cosmos. E o homem que a apresentou para mim pela primeira vez foi Sagan. Não diria “apresentou” com todo o significado da palavra, pois eu sempre a tive comigo, mas ainda não sabia o que era – uma joia preciosa que se guarda com cuidado, mas que se deseja mostrar para todos, foi isso que Carl me revelou.

“Vejam o que vejo! Sintam o que eu sinto!” – era o que eu, quando garoto, dizia para os demais quando contava para eles sobre a existência de outros planetas, dizia a ordem de suas órbitas, suas cores e meus planos para ir lá, visitá-los.

Por muito tempo escutei e escuto muitos e muitos me relatarem, repetidamente, os mesmos sentimentos que eu experimentava de minha forma só que em outros caminhos. Aparentemente eu não dava ouvidos, afinal de contas eram caminhos que eu não trilhava, mas levava em consideração que o “numinoso” estava disponível de várias formas – a variabilidade existia, mesmo que ainda não tivesse cunhado para mim esse termo.

E hoje olho para trás: aquele garotinho de sorriso leve, que mal fazia ideia das coisas que um dia descobriria (não que já faça), conheceu seu espírito logo cedo: o espírito de contemplador da Vida, apaixonado especialmente com seu berço, esse Universo (e quantos mais podem existir – a variabilidade certo?)

O assombro o elevava a um êxtase sem comparação – nunca experimentado de qualquer outra forma. Sagan traduzia os mesmos sentimentos e entregou a todos em suas obras... Sua voz ainda ressoa... Morreu em 20 de Dezembro de 1996, perto de meu aniversário de dois anos. Não fazia a mínima ideia de que ele mudaria a vida de um ser humano e daria ele a melhor orientação que podemos receber: a espiritual.

Não me deu uma bússola, não mesmo, mas me mostrou a minha e disse “aprenda a usá-la”. Através de “Cosmos”, passei a conhecer todas suas obras, inclusive a primeira versão de Cosmos que havia saído no século passado.

A segunda experiência, e mais recente, me forneceu uma sensação única: “Contato”, livro e filme, revelaram a mim que minha bússola estava já um pouco desregulada, e isso acontece com todas elas. Reencontrei meu norte. Tomado por um êxtase inflamado, deixei tocar a trilha sonora do filme, tão bem escolhida, e fui admirar novamente as pequenas velas do céu noturno – era de humildade e de esperança que eu me enchia, banhado em assombro.

Talvez o fato mais curioso de toda essa narrativa seja que eu descobri em dado momento que Sagan havia contribuído enormemente com as missões do projeto Cassini-Huygens, responsável pela foto de Saturno. Foi como estabelecer uma teia que me ligasse àquele garoto de outrora e visse estampado em seu rosto, novamente, o mesmo sorriso leve – a minha alma se revelava diante de mim; a viagem no tempo pelas memórias me revelava a mim mesmo.

A minha paixão, aquilo que eu exerceria de alma, era a compreensão da Vida e a contemplação de seu berço: o Cosmos. E havia poucos seres humanos capazes de me apontar caminhos (e não Caminho), nenhum tão capaz como Sagan. O mesmo sentimento que aflora em nossas almas nos conecta um ao outro, e isso diz muita coisa.