Berço da loucura

Ontem na maior das tristezas olhei meu pai. Em seus olhos apagados, antes de um brilho intenso, encontrei um vazio. O cirurgião esperava, tal como ele, pelos exames. Ambos, cada um à sua maneira, de encontrar a vida. O médico pelo seu juramento, mais um que terei de salvar das garras do cancro.

Por seu lado, meu pai pouco se importava, tanto lhe fazia. Impassível corria as notícias e olhava em volta, sem aquela vida que eu tanto amava. Saudades do bon vivant, do boémio.

O cão selvagem, como sempre o apelidei, que amei fora de todas as fronteiras, deixa marcar o seu fado. Sem luta. Sem coragem. Pensou, possivelmente: “O fim aproxima-se”. E resignou-se. A morte levanta sua foice. E atormenta os dois. E eu peço encarecidamente: “Deixa-me tomar o seu lugar”.

Pouco me importa. Apenas não quero sofrer a sua perda. Aquele que idolatrei, vezes sem conta. Em momentos de pura fantasia. O meu pai sempre foi alguém de muito especial. Todos poderemos dizer o mesmo. Sou orgulhoso.

Jornalista uma vida inteira, repórter fotográfico, flashou milhares de cenas. Pelo seu diafragma passaram instantâneos guardados pela sua intemporalidade. Correu dois continentes, deixou um espólio de maravilhosos postais. Nunca o vi acordar, durante a minha infância e adolescência, mal disposto ou contra o mundo. Onde entrasse espalhava alegria. Tinha uma presença forte e charmosa. Granjeava amigos em qualquer lugar e era um verdadeiro D. Juan. Eterno namoradeiro, destroçando corações sem parar. Admirava-o pela sua jovialidade.

Demasiadamente importante no meu crescimento, como homem acima de tudo. Lembro-me uma vez - a primeira e única que me bateu. Tinha seis anos. Acabaram de nos dar um pastor-belga. Tinha dois meses e na minha inocência, coloquei o cão a cerca de 50 cm, do solo. Naturalmente descuidei-me e ele caiu. Nessa altura meu pai bateu-me e disse-me: “ respeita a vida e os inocentes”.

Cruzamos estradas. Caminhamos juntos. Vogamos juntos, procuramos a eternidade. E ela é-nos negada. Eu assistia ao desenlace. A esta intriga com epílogo desconhecido. Procurava dentro de mim soluções, se calhar no mais íntimo Deus. Mas lamento, apenas acreditei na verdade da ciência. Com algumas reservas. Muitas mesmo.

E nesta viagem entra a minha mãe. Eterna devotada ao meu pai e a mim. Nunca será liberada do seu amor, dessa eterna dor. Tristeza. Mas ama-o de uma maneira intensa, que até eu não consigo perceber. Uma história de amor feita de pura faísca. De contradições. Mas continuam juntos e a lutar pela vida e pelo seu amor. Obrigado, mas sinto muita mágoa pelos dois e pelas saudades que me irão deixar.

Kadú
Enviado por Kadú em 25/07/2007
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