A chuva e eu

Parto pelas ruas escondido num sorriso semelhante a qualquer outro.

Chove sem tréguas, sem tréguas também é a saudade que arranco do peito um pedaço e jogo fora... As mãos frias, o cabelo molhado, as ruas desertas, indiferente mantenho o passo... Indiferente arranco vários outros pedaços e vou marcando o caminho de volta, outros eu trago escondidos num crime perfeito que ninguém nota, legítima defesa contra o covarde ataque da saudade, essa bandida que me espreita logo ali na esquina. É a segunda vez que ela me atinge em cheio, tiro grosso no peito à queima roupa e ei-me aqui, de novo, repetindo a canção, pasmo, exposto, desarmado.

Ao longe um coletivo em marcha lenta, nas sacadas luzes sem filamentos se acendem, continua a chover, o passo igual, cigarro aceso, aperto no peito, saudade de alguém...

Olho pra chuva que tanto amo... essa extensão dos meus sonhos que vem como um bálsamo sobre mim quando estou incomodado. Amo a obscuridade, a cor cinza que a chuva pesada dá às esquinas, o brilho ao asfalto, amo a vibração macia das folhas nas árvores que dizem sim, sim, sim ao chover e espero pela chuva, dias, noites, e por todo o alvorecer... Quando penso em uma coisa especial que defina minha vida, o que vivi nestes anos passados, o que vivo, me vem uma resposta bem definida: "CHUVA"... Eu amo a chuva e devo ter sido parte de algum oceano numa de minhas vidas regressas... ou um pássaro que foi carregado durante uma tempestade, sei lá...

Roubado num acento de bar, um casaco me aquece sobre os ombros e me esconde ou descobre como apenas um muro de tecido em capa de fantasia, igual ao de tantos outros com os quais me cruzo pelo caminho em corpos como o meu, perambulando por aqui e por ali, talvez em busca de algo também... Talvez apenas sentindo a chuva no rosto, talvez assoviando alguma melodia, pisando em poças apenas, talvez...

O que faço por aqui? O cigarro já apagado, o peito ainda apertado e a chuva indiferente ao meu estado...

O que faço por onde ninguém me encontra, por onde já nada resta e tudo se perde na água que escorre pelas ruas abaixo, lavando calçadas e levando-me também pelas calçadas com a sujeira das ruas, folhas secas de um novo Outono, cigarros de outros, cigarros meus, bocados de papel, sujidades, saudades, e eu com ela num dos bolsos, seguindo por entre as pedras das calçadas, assoviando rua abaixo...

Ricardo Matta
Enviado por Ricardo Matta em 03/08/2007
Reeditado em 08/08/2007
Código do texto: T590861
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.