Reflexões sobre a madrugada

Não existe melhor período do dia que a madrugada. É no espaço de tempo entre 0h e 6h, quando há uma espécie fusão entre o dia e a noite, que acontecem as mais proveitosas das 24 horas. Assim como os demônios abrem os portões do submundo e andam em liberdade por sobre a superfície material da terra, as ideias mais escabrosas e dignas de vergonha - aquelas guardadas a sete chaves no subconsciente - vêm à tona e ganham força a ponto de se tornarem reais, palpáveis.

Há um burburinho no ar, e qualquer movimento ganha atenção redobrada apenas pela fissura repentina da inércia. Um galho tocado pelo vento; um carro passando ao longe; ou um passo no corredor ao lado; tudo é motivo para uma virada rápida de pescoço. Até a volta à tranquilidade é inquietante.

Não por acaso aprendemos a evitar a madrugada. É o horário dos bandidos, homens-do-carro-preto e - como não falar? - a hora do Maligno. Aprendemos de nossos pais e provavelmente passemos a nossos filhos o medo da antemanhã, e assim fomos privados e provavelmente privaremos nossos filhos das belezas da aurora.

Falando em prole, se parássemos de dormir durante a madrugada, provavelmente não precisaríamos mentir aos pequenos humanos sobre a não existência de bichos-papões: poderíamos, para variar e dar o exemplo, falar a verdade. Para amenizar o possível medo da criança, passearíamos pelos jardins da cidade a mostrar os simpáticos duendes encarregados da pedante missão de molhar a grama todas as noites.

Sim, é assim que acontece.

Bem-afortunados os vampiros, de origem ou de costumes, pois deles e somente deles é o reino efervescente e criativo das primeiras horas do dia! Foi-se o tempo no qual a raça humana precisava viver somente com a luz solar. Hoje, caso não tenham percebido, podemos muito bem viver à noite graças a pequenos interruptores fixados nas paredes que substituem o papel do deus bíblico.

Nada de fiat lux, agora ninguém mais anuncia ao mundo quando acende uma lâmpada.

Quando invertemos o horário enfiado goela abaixo ao longo da história, podemos desfrutar da tão bela quanto incompreendida Sinfonia dos Morcegos, e não do vil e desajeitado cacarejo das aves. Ultrajante considerarem pássaros mais especialistas em som que os gloriosos ratos voadores, criadores e donos por direito do sonar.

Olavo David Neto
Enviado por Olavo David Neto em 30/03/2017
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