O Passageiro

Preciso me apressar. O trem partirá em direção ao além-mundo. Levanto da cama.  Visto-me. Faço minhas malas. Olho-me no espelho – para checar se ainda permaneço o mesmo, depois de acordar, mesmo diante das transformações que sofro no…sonho? Talvez. Antes de partir em busca do trem mágico, locomotiva de Merlim, pego o bilhete (sem ele, ninguém pode embarcar). Na rua, nem olho para os lados – não tenho tempo –, ando a passos largos. No trajeto até a estação, inconscientemente olho para o lado e vejo algumas pessoas conversando em um bar, distraidamente. Tento captar, mesmo sendo impossível, o que dizem uns aos outros. Mas continuo caminhando. Depois de alguns minutos, a estação ferroviária se apresenta como um formigueiro humano; como se as pessoas fossem formigas, trabalhando, comendo, conversando…uma confusão e tanta!

A porta do trem está na minha frente. Estou com um certo medo, receio, de adentrar. Nesse momento de indecisão, vejo uma cena comovente: um menino, provavelmente um neto, se despedindo de uma senhor, provavelmente a avó (e provavelmente viúva). Os dois choram muito. As lágrimas caem de suas cabeças como se os dois tivessem uma pequena nuvem acima de suas cabeças e os pingos caíssem ininterruptamente. Mas tem outra coisa que não contei: eles, aparentemente, não estão chorando. Os dois, neto e avó – suponho –, estão com sorrisos no rosto (forçados, com certeza.) Depois disso, me dirijo à porta e mergulho no silêncio.

O trem está quase vazio. Eu, um casal e o neto que chorava estão se fazem presente no vagão. Mas isso é secundário. O importante é que estou lendo um livro interessante. O escritor é Miguel de Cervantes e a obra chama-se “Dom Quixote de La Mancha”. O livro narra as aventuras de um fidalgo que, depois de ler um número absurdamente amplo de livros sobre cavalaria, começa a vincular as histórias com a realidade. Ele começa, assim, a pensar que é um cavaleiro que precisa de aventurar, lutar contra as injustiças, conquistar o coração de uma dama…enfim, ser um herói. A obra mostra que os objetivos, mesmo aparentemente loucos e difíceis, devem ser perseguidos. E…“Desculpe, meu caro, poderia abrir a janela um pouco para entrar um pouco de ar?” Uma mulher, desconhecida – não a vi entrar –, interrompe meu fluxo mental. Digo que sim, e abro a janela.

A floresta, o lago, os pássaros, o vento que entra em meus ouvidos, tudo e mais, ouço, sinto e vejo com a janela aberta. Neste pequeno ato, começo a perceber sobre a beleza da vida, sobre o valor que ela possui. Em toda minha vida, os livros sempre foram meu refúgio, minha fortaleza – todos formam uma espécie de Deus, para mim. A literatura era a minha janela aberta. A escrita, meu olhar. Mesmo com essas palavras desconexas, você, leitor, pode entender o valor que a vida possui? Suportá-la, mesmo que na maioria das vezes sendo tarefa árdua, constitui nosso principal objetivo. Já escreveu Proust: “Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas loucuras.” A loucura é a chave: abra a janela.

Quem sou? Que é a vida? Deus existe? Essas e outras reflexões invadem minha mente depois que abro a janela. Fico espantado. Porém, lembro-me de uma frase de Kant – mais uma vez me aventuro na literatura (nesse caso, na filosofia): “A filosofia começa no espanto.” Talvez ele tenha razão. Talvez a consciência da vida realmente comece quando levamos um susto. As reflexões vão aumentando, aumentando, aumentando…de repente, sinto meu corpo sendo controlado por uma força que excede a minha; uma força que vem de fora. Quando dou conta, estou na Grécia. Sim, na Grécia. Olho para os lados e vejo um senhor – gordo, com barba grande –, usando uma túnica branca. Um sujeito feio. Porém, há algo de misterioso nele. Uma luz, um estofo brilhante, que o envolve. Mas percebo que só duas pessoas sabem disso: ele e eu. Com a curiosidade peirando quase à loucura, me dirijo até ele. Mas ele não nota minha presença. Chegando perto, toco-o e, em seguida, ele me olha e diz: “Conhece-te a ti mesmo!”. Nesse momento, volto para o trem. Na realidade, estava sonhando. O que me despertou foram os pingos da chuva que entram porque a janela está aberta (quem a abriu?). Vou até ela, e a fecho.

O trem vai seguindo, linearmente. Os passageiros conversam uns com outros. Apenas eu fico isolado como um Alien. Aliás, este foi o designador que me deram quando era pequeno (ou até mesmo na idade adulta): Alien. Uma espécie de estranho que não conseguia manter relações, vínculos, com ninguém. Vivia desconhecido…como um Alien. Mas não ligo para isso. Continuo sentado, olhando para a paisagem lá fora. O trem não para. Vai seguindo como se estivesse destinado ao além. As reflexões tomam minha mente, e sou agora o maquinista. Sou agora, o neto que chora, o casal apaixonado, a avó que chora, a mulher que pete para abrir a janela...todos fazem parte de mim: sou todos e, ao mesmo tempo, nenhum. Quem sou?

dux Cheshire
Enviado por dux Cheshire em 26/04/2017
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