Os caídos: os estrangeiros do novo mundo

Um som estrondoso corta o ar e as nuvens na misteriosa dimensão noturna. Como um Big-bang ocorrido no ar-espaço, eles nascem (ou renascem, dependendo do olhar) no mutável novo mundo. O nascimento os fazem cair sem nenhum apoio material —  asas, paraquedas ou aviões. Eles vão caindo como frutas despencando das árvores em direção à terra seca, árida, dura. O vislumbre do novo lar que vos espera produz sensações estranhas: dúvidas, receios, medos...todas as sensações possíveis perante o novo — perante o desconhecido. Essas sensações vêm à tona por um simples fato: eles, doravante estrangeiros, sabem que serão tratos como anjos caídos, demônios,  pelos "habitantes originais" dos lares previamente ocupados. 

Os pequenos anjos caem, ininterruptamente, com os ventos balançando os cabelos para lá e para cá. "Nascer é sempre uma queda?", um deles pergunta para a noite. A resposta não vem, é claro. A dúvida permanece pairando sobre os olhos dos futuros "demônios". De repente, como que chamados pelos habitantes do novo mundo, eles caem perfurando o chão produzindo um barulho estrondoso. A estranheza nasce com uma força descomunal - para vê-los. Eles são como novas mercadorias, desconhecidas, trazidas pelos capitães dos navios depois de longas viagens: todos querem olhá-los.   

Os leitores dessa pequena história sabem muito bem que, depois de uma queda, o próximo passo é levantar. Os estrangeiros se levantam com muita dificuldade. Além do mais, caíram do céu limpo, detrás das nuvens suspensas na cristalina noite: como pássaros que perderam, como que por magia, as asas. Eles, os anjos caídos, são diferentes entre si. As línguas, os olhares, os pensamentos, os costumes, as crenças, as descrenças, as dúvidas…não citarei todas as divergências que eles possuem porque são muitas. Aliás, não somos todos diferentes? Os habitantes originais desses mundos que os estrangeiros habitarão não são todos diferentes? Essas perguntas surgem na queda — no nascimento.

O que esses pequenos anjinhos terão que fazer para se adaptarem é a metamorfose. O processo de transformação do "eu" que há dentro de mim, idealizado por mim, passa a ser um "eu" idealizado por eles (os chamaremos de não-estrangeiros, mesmo sendo paradoxal a designação porque não somos todos estrangeiros nesse mundo multicultural?) A alteração do "eu" acontece quando a força externa, como um processo de modelagem, doma nosso corpo e nossa mente: mudando tudo que há no externo e no interno. O nascimento de um novo "eu" perante as correntes do novo mundo; os verdadeiros "eu-s" são acorrentados dentro de uma caixa onde não há a possibilidade de mudança. A Lua pende pequena na noite escura com seus raios azulados refletidos nos vidros dos prédios.  A forçosa mudança ocorrida é um reflexo da intolerância que todos, querendo ou não, possuímos. 

Os caídos do nada, com o decorrer do tempo, são como todos os outros habitantes das cidades onde caíram sem aviso prévio: são todos "iguais aos outros". Assim, passam a não conhecer a si próprios; desconhecem o "eu" que ainda reside dentro deles. Esse processo monstruoso de metamorfose estrangeira — adaptação cultural — coloca muitos "seres caídos" na crise de identidade. "Quem sou eu?" Essa é a pergunta primordial para descobrir a verdadeira identidade. Porém, nesse novo mundo, ela é isolada como um pássaro na gaiola. Não é possível questionar "as normas" dos lugares onde caíram. Agora, os mandados do céu, das nuvens, adaptam-se aos lugares que caíram. 

Contudo, esse processo de metamorfose não é contínuo: dura só até um certo tempo. "Os mandados por Deus" começam a renascer. Eles começam a se re-transformar: o antigo "eu" volta à vida (mas, eu e você sabemos que eles nunca deixaram de existir.) Esse novo processo faz dos lugares habitados um sítio multicultural. Agora, todos os costumes, crenças, línguas, pensamentos, olhares — todas as culturas — se combinam como as estrelas e o universo escuro azulado. O renascimento ocorre como o bater das asas dos pássaros que antes estavam presos e, agora, estão livres para voar. O processo de renascimento é difícil de acontecer. Porém, não é impossível. Aliás, vale ressaltar que nesse processo dito como “improvável de acontecer” pelos “habitantes originais” das cidades-lugares, onde os pequenos e frágeis seres caíram, o impossível torna-se possível; o inimaginável torna-se imaginável; o irreal torna-se real.