O balanço

As pontas dos dedos alcançam as grades do balanço a fim de saudarem o velho amigo. Às vezes eu passei por ali e de longe o vi, sem tempo de parar pela última vez. A vida adulta transcorre com pressa, todavia trata-se de uma ocasião especial. Não existe ninguém ao meu lado para vomitar imposições a respeito da minha conduta e para ser honesta, aprecio sobremaneira essa pequena liberdade que o destino me concede.

Parado no mesmo lugar, lá está ele, vazio em par de igualdade comigo ao rememorar nosso último encontro, eu devia ser menina ainda, tenho plena convicção. O solado do tênis está a riscar a areia. Não sei precisamente que horas são, apenas que é dia porque o sol aparece por entre as nuvens como se olhasse por mim e por todos aqueles que têm uma história que ninguém mais sabe, trancada no peito junto com uma sucessão de transformações sentidas ao redor.

Antes o campo era verde e a casas todas coloridas com seus telhados alaranjados, as crianças se amontoavam para brincar na rua, tudo tinha gosto de sorvete. As crianças cresceram, os tratores atropelaram todas aquelas casinhas lúdicas, uma por uma e em seu lugar são erguidas recriações claustrofóbicas de paraísos artificiais que por vezes turvam a visão, tentam inutilmente tocar o céu como se fossem uma prece. Todos têm a cor da melancolia, o insuportável cinzento da poluição que intoxica o consumismo.

Este pequeno espaço é tudo que sobrou de uma era, todavia os olhos da ganância nunca se contentam, aqueles que ascendem ao topo aspiram; se findam em troféus banhados a bronze e estanho, menções honrosas e associações tão desprezíveis quanto aquele sorriso de quem ferrou o outro para estar onde está, mas dissimula a surpresa envolta do óbvio.

Há ferrugem por entre as correntes desse balanço, o assento de madeira padeceu aos efeitos do tempo e me abriga tão gentilmente que todo o resto se torna irrelevante.

Eu não sou a minha idade. Eu não sou o meu currículo. Eu não sou uma foto tratada no Instagram. Eu não sou o meu número de seguidores. Eu não sou o que o mundo tenta me convencer.

Eu sou bem-vinda em algum lugar. Exatamente aqui.

Eu e meu tênis vermelho. Eu e meus sonhos loucos. Eu e minhas músicas “fora de moda”. Eu e minha esquisitice. Eu e o meu extenso currículo de desilusões. Eu e a minha luta quase quixotesca para que não suguem o que ainda resta de esperança. Eu e a minha mania de esperar por quem não volta mais, mirando o horizonte em volta como se alguém fosse se sentar ao meu lado. Eu e a minha vontade de voar.

Neste instante delego ao silêncio que se faz à minha volta que me conduza porque não me sinto uma alma perdida vagando por um mundo sujo e injusto. Uma fagulha da infância persiste e eu permito que essa ilusão recrie a sensação das saudosas borboletas no estômago. Quero subir cada vez mais e fazer de conta que meu maior terror é pegar recuperação e que o medo não devora sistematicamente as minhas defesas.

Quando menina eu sonhava acordada com o dia em que seria “gente grande”. Eu imaginava um conversível vermelho numa estrada que me levaria a algum lugar. Na prática, crescer não foi tão emocionante quanto parecia quando eu não tinha idade para me sentar no banco da frente, dormir até mais tarde e escrever com caneta. A infância não passou de um sonho, a adolescência decorreu num sopro...

Troquei os balanços por outras formas de diversão e passei por eles milhares de vezes como se nunca tivesse sido criança, a cada ano que passa e a vida me rouba as pessoas que amo, os meus sonhos e refúgios até me deixar em frangalhos e apelar para cartelas que me prometem algum descanso quando bem administradas. A dose excessiva me libertaria de seguir vivendo nesse caos onde estar perdida é minha única convicção firme.

Eu poderia me balançar até a noite cair, imersa na ilusão de correr por entre verdejantes jardins e relembrar a primavera que nunca mais voltou. Não sentir dor. Não sentir nada que me faça mal. Não ver minha poesia julgada e ridicularizada por possuir a minha formatação e desobedecer às imposições que tanto me tolhem. Todo o mundo, a bem da verdade. E eu gosto quando o sol aquece o meu coração, quando ele ainda parece disposto a amar mais um pouco, amar de novo, não se fechar na dor que o endureceu.

Por isso eu me jogo de cabeça nesse emaranhado de palavras que não se configuram em gênero algum, são meramente confessionais, rabiscos num guardanapo que não pretendem ser comercializados e glamurizados.

Quero balançar um pouco mais, não gostaria de sair daqui logo agora e me descobrir outra vez obrigada a suspirar por mais este sonho esfumaçado cujos rastros de existência se vão à medida que os ruídos mundanos me situam e os olhos se abrem para um novo dia que apesar da ironia, nada me traz de novo senão a sensação de que eu gostaria de ter o tempo de volta, pelo menos o suficiente para acalentar a alma.

São apenas sonhos, todos me dirão, e eles não significam nada, não passam de pequenos lapsos de lucidez que propiciam ao corpo oprimido descansar e a alma, sedenta por liberdade, viajar para onde bem entender, mesmo que tenha hora para voltar e que pouco ou quase nada possa registrar de todas as suas magníficas experiências como turista.

Este balanço fica em algum lugar do mundo onde não apenas minha alma vaga como se sente bem. E eu me sinto tão bem... até que as notícias ruins do dia-a-dia me lembrem que eu destoo do politicamente correto, não sigo modinhas e não piso nos outros para chegar ao topo, porque embora só eu não pretendo ser mais ninguém além de mim...

Esse velho balanço afinal de contas é meu refúgio, sentar-me nele e permitir que as boas recordações prevaleçam sobre toda a tristeza que nem sempre é chorada, mas incomoda de qualquer modo porque apesar do meu aparente semblante de tranquilidade por dentro eu incendeio de vontade de voar, fazer outro trajeto, compor outros versos, não ver a vida passar como se eu estivesse destinada a ser figurante de todas essas estrelas de plástico que largam mão de todos os escrúpulos por aplausos.

Por mim eu não sairia desse balanço tão cedo. É o mais perto que eu chego de voar, de me conectar com o vento, com o infinito, com a certeza de que o existir não pode ser essa prescrição tão superficial. Esse frio na barriga nunca vai estar postado numa rede social porque ele é tão doce, tão meu, tão puro e se eu pudesse queria de volta todas as flores da primavera, as cores da inocência, melodias agradáveis que toquem a alma e não apenas lucrem.

Aos poucos o dia se faz noite e embora eu não conte as horas porque me baseio apenas pela cor do céu, estou ciente de que é hora de ir. Se algum dia eu terei o privilégio de retornar, não hei de prometer, me valho daquele clichê "que seja o que tiver de ser" porque desse modo não crio expectativas e não abraço a desilusão. E espero, no retorno, saudar o meu velho amigo como se nunca tivéssemos nos separado.
Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 26/10/2017
Reeditado em 01/05/2018
Código do texto: T6153563
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